Filmar obstinadamente

Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

Entre as revelações e raridades da 38a. Mostra Internacional de Cinema, está o documentário FILMAR OBSTINADAMENTE, um ENCONTRO COM PATRiCIO GUZMÁN, de Boeia Nicot. A história de Guzmán é conhecida. Ele vinha colhendo imagens há um ano sobre as tentativas de Allende, que, com o apoio majoritário da sociedade civil e com base nos recursos legais da Constituição, tentava manter-se no cargo de Presidente do Chile, para o qual fora  democraticamente eleito. Diante das pressões da direta, ele aceitara inclusive a realização de um plebiscito, do qual saíra vitorioso.

A direita e os empresários resolveram então paralisar o país: os transportes, o serviço de lixo público, a distribuição de gás, as fábricas… Allende e o povo resistiram. E aí a CIA entrou em ação e bombardeou o Palácio de La Moneda. Allende fez seu discurso de despedida instantes antes de ser assassinado, no dia 11 de setembro de 1973.

Guzmán, à época com pouco mais de 20 anos, foi um dos 10 mil detidos que foram levados ao Estádio Nacional. Foi libertado e filmou ainda dois dias depois do golpe. Registrou, entre setembro de 1972 e setembro de 1973, milhares de horas sobre os conturbados acontecimentos de seu país. Depois emigrou para Paris e demorou 7 anos para realizar a montagem desse material, que viria a constituir A BATALHA DO CHILE, considerado o mais importante documentário da história do cinema.

FILMAR OBSTINADAMENTE é um grande documentário porque o diretor concede  voz a Guzmán. Ele praticamente desaparece por trás do filme e deixa seu protagonista explicar-se. Na primeira tomada, estamos dentro da casa de Guzmán. Uma típica casa de intelectual que vive em Paris: espaços pequenos e integrados, paredes recobertas de livros e muitos quadros. A decoração é toda branca e cria uma atmosfera acolhedora. Mas aí a câmera vai fechando os enquadramentos e descobrimos que os quadros são do La Moneda sendo atacado, da luta do povo, dos pôsters dos filmes de Guzmán sobre a história política do Chile a partir de Allende. Em uma palavra: a memória obstinada.

No filme Guzmán explica os processos técnicos de realização de seus documentários, alguns extremamente difíceis, como o filme sobre o processo de condenação de Pinochet pelo juiz espanhol  Garçon… Explica também uma chave que diferencia os documentários como meros relatos e os documentários que ficam para a história. “Há uma história em cada filme, há fatos. Mas entre os fatos não há nada que os ligue. Aí entra a descrição, que é o mais difícil num documentário, e é feita de conteúdos de ar”. Nesses “conteúdos de ar” entram a acuidade crítica, a sensibilidade e a observação que podem transformar um caso particular, um depoimento ou uma memória numa imagem e/ou discurso antológicos.

Guzmán também confessa que, passados os 70 anos, ele não sabe mais porque faz filmes sobre o Chile. Mas sabe que seguirá fazendo-os. Vale lembrar que a história do Golpe de Pinochet é camuflada nas escolas chilenas, que os historiadores lidos no país “não são confiáveis” e que seus filmes, tirante um reduzidíssimo número de colégios e centros acadêmicos de instituições superiores, não encontram espaço para exibição no Chile.

Para ler outros textos do Prof. Veronese, acesse blog do CPV (link Dicas Culturais do Verô).

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