Deus Absconditus

Eduardo Oyakawa

Notou, certa feita, o influente e heterodoxo filósofo socialista Martin Buber que a palavra religião não se encontra na Bíblia.

Esse fato seria apenas mais uma platitude no que concerne à hermenêutica dos livros sagrados se não nos revelasse algo bastante mais importante e profícuo do ponto de vista da epistemologia da religião.

Pode o ser humano viver sem acreditar em Deus?

A resposta é evidente e para certas elites intelectualizadas no ocidente parece mesmo beirar o escândalo intelectual esta pergunta: Deus? Como assim?

Em um mundo onde o desenvolvimento tecnológico parece não ter fim, onde a laicidade do Estado democrático de direito consolidou a ideia das garantias inalienáveis do homem, onde a palavra “ciência” ganha cada vez mais a aura de sacrossanta verdade insofismável, nesse ethos cultural, falar sobre Deus parece mesmo ser algo, senão dispensável, ao menos pueril e privilégio dos mal-educados nos saberes positivistas da época digital.

Nos corredores da universidade localizada em Marburg-Biedenkopf, na Alemanhã, conta-se, em tom de pilhéria, que o filósofo Kant só teria reinserido Deus em sua Opus Magnum deontológica – a Crítica da Razão Prática – depois que o seu mordomo leu a primeira Crítica e ficou desapontadíssimo com o patrão pela ausência do seu Deus luterano…

Mas, afinal de contas, estamos falando de que quando nos referimos à religião e a Deus?

Religião é um sistema cultural encarnado na realidade natural humana e se estrutura numa plêiade de mythos, rictus, prédicas morais e um arcabouço considerável de engajamento com o status quo social e político em que viceja seu poder de agregar e difundir visões particulares de mundo (argumentos ex cátedra sobre as revelações transcendentais).

Há uma questão debatida há anos nas ciências humanas e na filosofia da religião: é possível falarmos de religiões no plural (dada a enorme variedade cultural na história humana) ou é crível falarmos em uma essência das religiões, ou seja, algo que as unificaria sob os mesmos fundamentos arquetípicos?

Na segunda escola temos nomes como Mircéia Eliade, Rudolf Otto e filósofos que mesmo durante a era de Péricles, na Grécia democrática, debatiam e repudiavam o idealismo platonizante (base metafísica para as teologias ocidentais), como é o caso do ultramoderno Górgias e seu relativismo absoluto ou, a posteriori, o pai do ceticismo Carneádes.

Religião portanto deve ser entendida como uma construção humana vinculada aos meandros e vicissitudes atinentes ao poder estabelecido e eivada por doses generosas de alienação e manipulação humanas.
Sociólogos de jaez marxista, antropólogos estruturalistas e psicanalistas têm atacado esse caráter fetichizante das religiões.

Só deveríamos acrescentar a título de provocação intelectual a impressionante recorrência desse instituto sagrado na história humana… praticamente não há uma só civilização conhecida que não tenha articulado um nodal sistema de significados religiosos!

E talvez seja algo presunçoso chamarmos essas cilivizações, in totum, de alienadas…porque estaríamos excetuando apenas a nós mesmos como esclarecidos, é claro, nós que lemos Nietzsche na academia… e analisamos o homem de um ponto de vista absoluto…

No que concerne à ideia de Deus a questão é bem mais complexa!

Foi Santo Thomas, entre tantos outros, que falou em um Deus absconditus, ou seja, um Deus incompreensível às categorias racionas humanas e mergulhado em equívocos dado o nominalismo inerente aos nossos sistemas linguísticos de significação ontológica.

Se conjecturamos um Deus, devemos fazê-lo sabendo que ele é o inteiramente outro de Rudolf Otto ou o tu eterno de Martin Buber, ou seja, sua potência não cabe nos limites da racionalidade noética do homo sapiens criatural.

Foi Martin Heidegger quem nos ensinou no século XX (tomando de empréstimo o pensar autêntico de Heráclito e dos pré-socráticos) que o SER é ALETHÉIA…ele nunca é algo circunscrito pela sensibilidade do tempo, espaço e causalidade (os famosos transcendentais Kantianos) mas o SER dá-se, desvela-se para, pari passu, esconder-se imediatamente num processo de misteriosa ocultação.

Noutras palavras, o SER nunca é, porque se o fosse seria apenas ENTE e não o próprio SER.

Em nosso mundo, onde o homem foi reduzido à pavorosa categoria de ser calculador, onde grassam o poder e a maquinaria do mundo capitalista a lhe sonegar o desejo de vida autêntica, nesse labirinto kafkiano, talvez discutir religião seja algo sério para nos acautelarmos em relação às imposições alienantes do poder instituído.
Mas para falarmos sobre Deus, o Deus abscontidus dos filósofos, será preciso outra disposição para cuidar do mundo e curá-lo.

Dá-sein não é subjetividade, não é ser racional nem calculador, não é ser humano como quis o mundo ocidental desde a metafísica Platônica.

Dá-sein é aquele que ouve os sons do silêncio e se espanta como um redivivo Alberto Caeiro a contemplar a luz do sol e estender-se no jardim à espera de uma nova criança a lhe estender as pequeninas mãos…

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