Depressão e profissão

Pedro de Santi

Em clima de fim de maio e aproximação do final do semestre letivo, trago um assunto que temo ser oportuno: a incidência de depressão no campo do trabalho.

‘Depressão’ é um termo descritivo, inicialmente. Ele diz respeito a um afundamento: aplica-se a uma pista de asfalto cujo solo de base cede, assim como a um estado de humor rebaixado, triste. Mas o termo também nomeia um transtorno mental mais severo, da família da psicose. Certa indistinção ou sobreposição entre a depressão como estado e como transtorno gera um uso quase indiscriminado de anti-depressivos para situações de tristeza.

A depressão como transtorno vem sendo descrita em termos muito próximos desde a antiguidade: passando, entre outros, por Hipócrates, Galeno, Pinel, Freud, Kraepelin e, atualmente, o DSM 5, o manual americano de referência em diagnóstico psiquiátrico. Mas, até o século XIX ela era chamada de melancolia (bile negra, em referência à teoria antiga dos quatro humores). Houve também uma mudança semântica. A melancolia identificava os loucos e os gênios, era predominantemente masculina e se caracterizava por pensamentos mórbidos (como em Hamlet). Com a virada para o século XX, agora como depressão, passou a ser identificada como um distúrbio de humor, predominantemente feminino e, com isso, ganhou uma dimensão exclusivamente depreciativa (como na TPM), de doença.

Já o termo ‘profissão’ remete a trabalho, mas também a uma declaração ou voto. Há no termo uma dimensão de ação e afirmação, como na expressão “profissão de fé”.

Neste texto, vou abordar três dimensões da relação entre os termos. Naturalmente, há muitas outras.

Há poucos meses, prestei um serviço para uma grande empresa multinacional. Ela está encerrando parte de seu negócio na America Latina. Tendo estado estabelecida por aqui há mais de 40 anos, ela se preocupou com a recolocação de seu quadro de funcionários: parte deles foi realocada nas áreas que permanecem em atividade, outra passou a ter um novo patrão, que comprou as instalações que seriam desativadas.

O convite foi para que eu fizesse uma palestra sobre transfomação, num sentido positivo e motivador, num encontro que representava um ritual de passagem entre as duas situações profissionais. Quase perdi o convite ao propor tratar da questão do ‘luto’. Inicialmente, pareceu um termo muito pesado e negativo, com o potencial de evocar mágoas e discordâncias. Mas consegui argumentar que a elaboração do luto era a condição para transformar o sentido de perda em nova disponibilidade. O resultado foi rico e desdobrou num trabalho com outros grupos, inclusive na Argentina.

Em depoimentos bastante emocionados, muitos falavam da dimensão de família com que viviam seus trabalhos, do orgulho que sentiam por estar ligados a uma marca de nome sólido e da insegurança frente ao futuro. Assumiu-se a dor e apostou-se no futuro.

Uma pessoa que passa por um luto se encontra deprimida, descritivamente. Rebaixamento do humor, tristeza, desinteresse, pensamentos saudosistas e aparentemente mórbidos. O luto é justamente a luta entre o reconhecimento de que algo querido foi perdido e a tentativa de negar a realidade e manter vivo o que se foi. Ao longo de nossa vida profissional, passamos por diversos estados de depressão, naturalmente, em situações de perda ou frustração ante expectativas. E o luto, como estado depressivo se distingue do transtorno depressivo por uma variável importante: ele passa. Demora, mas passa. Além disso, o luto é um processo de amadurecimento e transformação a ser atravessado, não negado.

Outra forma de pensar a depressão, para além do senso comum, é falar sobre ela da perspectiva da psicologia experimental. De uma perspectiva behaviorista, diferente do que pode parecer, a depressão não seria um estado induzido pela ocorrência de um ou mais eventos tristes ou ruins, mas a percepção de que nenhum de nosso atos produz qualquer modificação no ambiente. Operamos continuamente gestos em direção ao nosso ambiente: alguns são reforçados e tendemos a mantê-los; outros são punidos e tendemos a evitá-los, ao menos na presença do agente punidor; mas, quando comportamentos nossos simplesmente não tem consequências, vamos parando de emiti-los. E se esta experiência se generaliza, vamos nos tornando prostrados como um animal enjaulado, com o sentimento de que não fazemos diferença e não podemos fazer nada para mudar. Assim, mesmo que se esteja numa condição de trabalho considerada boa, esta é a depressão do desamparo e da impotência, do ir ao trabalho arrastando os pés sem vontade ou esperança.

A terceira dimensão da depressão que quero tratar é extremamente típica de nosso regime de trabalho. Num ambiente de excesso de estímulos e demandas, somos colocados em posição de constantemente respondermos ao que se apresenta e nos defendermos como pudermos da invasão. É comum que tendo passado por longo período num regime assim, quando paramos, tenhamos uma sensação de vazio e de não pertencimento: olhamos em torno e temos a impressão de que não escolhemos nossa vida; não sabemos mais dizer se gostamos ou não do nosso trabalho, de nossos amigos e, mesmo, de nossas famílias. Esta é a depressão da falta de sentido.

Nesta situação, o trabalho aparece como fardo e justamente não como profissão, algo em que eu me realize, reconheça e considere estar implicado. É impossível ser criativo e inovador sob regime de sobrecarga: não agimos, apensas reagimos. Muitos pacientes em meu consultório contam que trabalham naquilo mesmo que escolheram, mas que tem um volume tal de trabalho que tudo o que fazem é “tirar trabalho da frente”, recorrendo ao seu traquejo e experiência, mas sem qualidade ou dedicação verdadeiros. Para isto, seria necessário ter tempo e espaço numa dimensão rara, hoje.

É como se tivéssemos acordado de repente em meio a uma vida que não reconhecemos como nossa. Como psicanalista, chamo esta experiência de “surto de lucidez”. Mas há quem a chame de depressão e corra para se medicar.

O estado de depressão que é assim despertado pode ser um momento preciosos de reflexão e reposicionamento profissional ou pessoal, em busca de um padrão de vida melhor, de uma vida que pareça mais significativa à pessoa.

Quem quer sair do fluxo saturado do trabalho pode ser acusado de não estar comprometido com ele, não ter atitude pró-ativa ou ser resistente à mudança. Mas me parece uma boa ideia resistir à mudança quando se está em queda livre, deprimindo.

Esta última forma de depressão, assim como a tristeza do luto, são, a rigor, positivas. Elas dizem respeito à maturidade e à possibilidade de transformação. Mas é difícil reclamar pelo direito inalienável de poder estar triste a um mundo seduzido pela ladainha que vende que todos podem ser felizes e, portanto, têm a obrigação de sê-lo e estar constantemente ativos, sob pena de serem chamados de doentes.

A este mundo, a depressão só chama a atenção quando torna um funcionário improdutivo, ou quando se suspeita que ela possa ter induzido um piloto de avião a dar fim à própria vida, levando consigo centenas de pessoas.

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