Circuitos da Solidão

Pedro de Santi

Uma das mais expressivas formas de se falar no individualismo e interioridade do Homem moderno é o nascimento da leitura silenciosa e solitária, no Renascimento. A imprensa disponibilizou uma quantidade inédita de livros, o que tornou possível a cada vez mais pessoas terem os seus em casa e separá-los de seu uso ritual coletivo.

A leitura silenciosa propiciou a criação de um mundo interno individualizado, rico em imagens e interpretações próprias. Hamlet é um paradigma da subjetividade moderna; em sua solidão, suas leituras e seus extensos monólogos, nos quais não se limita a reafirmar o que já sabe, mas realmente reflete.

Quem não teve a experiência de se decepcionar ao assistir um filme baseado num livro conhecido e querido? Como não perceber a relação direta entre o empobrecimento da interioridade e a substituição progressiva, ao longo do século XX, da linguagem abstrata da escrita para a imagem pronta nas telas, de televisões, computadores e smartphones?

Pois bem, a releitura recente de Circuitos da solidão, livro de Bernardo Tanis (Circuitos da solidão. Entre a clínica e a cultura (205 páginas). São Paulo: Casa do psicólogo/FAPESP, 2003) me evocou esta lembrança pelo convite contínuo que nos faz para que mergulhemos em nossa interioridade, para que façamos nossas próprias associações com nossa clínica e nossos livros favoritos. Nossa própria solidão.

Na primeira parte do livro, recuamos à Antiguidade e ao terror da solidão no Homem político grego, cuja punição máxima é o ostracismo. É evocada também a solidão de Santo Agostinho, que desiste de buscar a verdade fora de si e passa a procurá-la em sua interioridade: mas esta solidão é revertida em presença plena com o encontro de Deus no mais íntimo de si.

Na Modernidade, o sentimento de solidão parece ter sido propriamente evidenciado e tematizado. O extremo individualismo moderno tem como corolário o sentimento de solidão. O Romantismo é evocado como expressão maior de um discurso consciente da impossibilidade de comunicação com o outro, nostálgico de um estado de comunhão perdido.

Na terceira parte, Solidão e psicanálise, a solidão ganha a formulação de hipersensibilidade à ausência do outro. Entre outros, Freud, Klein, Lacan e Winnicott são visitados. De sofrimento ante a separação à conquista subjetiva de um eu capaz de se desfusionar do objeto, a solidão está implicada na constituição subjetiva. Esta passagem se dá, sobretudo, com a apresentação de Winnicott e marca uma mudança de tom no livro. Uma vez que o sentimento de solidão é uma condição humana, ele perde sua conotação negativa e passa a ser pensado em termos de modalidades. Para poder explorá-las, Tanis cunha a expressão “circuitos da solidão”.

As solidões parecem ter em comum o sentido de separação do objeto, mas os destinos desta separação podem ser os mais diversos. A solidão neurótica é aquela da internalização dos objetos dos quais o eu se separou: é uma solidão conquistada. A psicótica é aquela do eu à mercê dos ataques dos objetos internos. Há também a solidão realmente fria da separação anterior à possibilidade de interiorização do objeto. A última parece ser a mais radical e característica dos quadros psicopatológicos mais estudados pela psicanálise hoje.

Na quarta e última parte, Solidão e mal-estar, voltamos ao campo da cultura e o livro se alça a um plano ético. Nosso mundo contemporâneo é apresentado em termos de radicalização da experiência de solidão e anomia. A passagem da dimensão cultural à estruturação psíquica individual é demonstrada através das transformações sofridas pela família, no último século.

A psicanálise é convocada ao trabalho de combate ao registro narcísico e resgate da implicação política de nossa experiência. Em tempos tão ruidosos, a solidão pode se reverter em momento de reserva e reflexão:

“Um dos ganhos da análise é a possibilidade de transformar um sentimento negativo de solidão em uma experiência em que a solidão se manifeste como fundamento da singularidade.” (p. 192)

Só que a aquisição da singularização significa, tal como nos ensina a psicanálise, darmo-nos conta de não sermos autosuficientes. O sentimento de solidão nos endereça aos outros humanos.

Numa oportunidade na qual recorria a Hamlet para comparar as características do sujeito moderno clássico com nossa subjetividade contemporânea, ocorreu-me o seguinte: hoje, temos cada vez menos alguém com quem monologar…

A leitura de um livro como o do Bernardo é um refresco e um alimento a um outro interno afável. Ele anda um tanto acuado, é verdade, mas com um pouco de tempo e tendo a sorte de ter em mãos um bom livro como este, podemos ainda desfrutar de boas horas de solidão bem acompanhada.

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