Cercas físicas e políticas

Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

Quem circula a pé por qualquer grande cidade vê coisas que os outros não vêem. Desse olhar se fez a matéria dos maiores cronistas brasileiros: João do Rio, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e tantos outros. E isso nem foi há tanto tempo. Hoje, os cronistas, como os outros cidadãos de qualquer grande cidade brasileira, tornaram-se reféns dos assaltos e do trânsito, e por isso escrevem, em geral, mais a partir do que os noticiários mostram do que propriamente daquilo que poderia ser captado diretamente nas ruas.

Numa cidade como São Paulo, que se esforça para ser mega em tudo, as ruas ocultam coisas que estão na cara do paulistano, mas que a pressa do automóvel (ou a altura do helicóptero) não deixam perceber. Falemos das cercas que “protegem” os espaços públicos. Nos últimos anos, a Prefeitura decidiu cercar várias áreas livres da cidade. Para isso elegeu uma cerca que se projeta reta do solo e se fecha no quarto final da sua altura num ângulo, imagino, de uns 25 graus. O efeito estético é, para dizer o mínimo, o de uma forca. E essa maravilha de design foi tomando conta da cidade.

A Prefeitura cercou os jardins do metrô Anhangabaú. Como há muitos barzinhos e baladas no entorno, namorados ocupavam esses jardins. E em nome da moral dos bons costumes, os jardins foram cercados porque se tornaram “perigosos” (para quem?). Depois as cercas enclausuraram a pracinha em frente à Faculdade São Francisco e dezenas de outras espalhadas pelos bairros das quatro zonas da cidade. Mais tarde elas se ergueram como redoma para “proteger” a réplica do 14 BIS na rotatória próxima ao Campo de Marte. Não satisfeita, a Prefeitura ergueu sua forca protetora nos jardins da estação São Bento do metrô e – miaaauuu!!! – capturou o lindo gatão amarelo de olhos verdes do Gustavo Rosa, que ali estava, há anos, debaixo do viaduto Santa Ifigênia, sem nunca sofrer qualquer atentado.E para quem ainda não viu, a cerca foi erguida também na parte posterior da Catedral da Sé. Isso mesmo: uma cerca em torno da Catedral, cujas paredes são de pedra e se lançam a uma altura de cerca de 50 metros!

Parênteses: o leitor de qualquer jornal brasileiro se depara diariamente com a denúncia de falcatruas envolvendo licitações de obras públicas. E o menu é farto: plano municipal, estadual e federal. Até hoje não li nada sobre alguma falcatrua que denunciasse interesses escusos envolvendo essas cercas de estética nazista. Esse artigo quer chamar a atenção apenas para o aspecto simbólico dessas cercas.

Pois bem, as cercas medonhas e ameaçadoras acabam de chegar à Câmara Municipal. Em virtude das manifestações acontecidas nos últimos meses (e que nunca foram interrompidas em frente à Câmara), os vereadores decidiram cercar o prédio projetado por Niemeyer. O novo visual da Câmara, que pode ser conferido in loco por qualquer paulistano, ficou assim: cercas garfadas no plano da rua, substituição dos vidros transparentes por vidros fumê 20mm, e mais cercas isolando o grande hall do térreo (destinado a discussões abertas com manifestantes de qualquer ideologia). Assim, vemos que as redomas físicas se estendem ao plano político e o espaço público vai se tornando (em São Paulo e pelo Brasil afora) um espaço privado. A polícia é militarizada, a polícia se instala dentro da USP, as empresas de segurança privada passam a ocupar o espaço da segurança pública (ver o filme O SOM AO REDOR, de Kleber Mendonça), e etc. etc. etc…

As consequências do que isso representa, ficam por conta do leitor. E, voltando a São Paulo, para fechar com uma nota de humor negro. Como alguém escreveu no número inaugural da ótima revista Samuel: se a cidade de São Paulo tivesse praias, elas seriam cercadas e o cidadão que desejasse apenas contemplar o mar teria que pagar pedágio.

Para ler outros textos do Prof. Veronese, acesse blog CPV (link Dicas Culturais do Verô).

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