Bom senso e senso comum

Por Pedro de Santi

Embora soem parecidas, as duas expressões remetem a coisas muito diferentes.

O bom senso diz respeito a uma capacidade de refletir sobre diversos ângulos de uma mesma questão e buscar uma solução de compromisso intermediária. Com bom senso é possível agir, sem imediatismo e com a consciência de que se está entre incertezas. Talvez seja isto o que mais dói no bom senso: estar fazendo o melhor possível, mas sem o apoio de uma certeza absoluta. O bom senso assume a precariedade e a impureza das soluções de compromisso.

O senso comum é cheio de certezas e já não implica em reflexão, mas numa aderência a ideias que circulam e se espalham como uma onda. O senso comum pode, ao longo de muito tempo, absorver ideias modernas e positivas num sentido obter boas relações humanas; mas, por seu caráter de onda, ele tende ao fanatismo, a aderências irrefletidas. Revoluções, linchamentos materiais ou simbólicos podem ser exercidos pelo senso comum dominante. Na temporada seguinte, depois de ter agido assertivamente (e, até mesmo violentamente) o mesmo senso comum pode refluir em outras direções.

O senso comum não costuma ter muita consistência. Não é que as ideias que ele veicule sejam boas ou más, mas pela sua forma mesma de engajamento superficial, que tem como característica a sensação de pertencimento e aceitação.

No século XVII, procurando escapar do ceticismo renascentista, Descartes resolveu se despojar todo o conhecimento que havia recebido pela cultura e começar um sistema filosófico do zero (Ver “O discurso do método” (1637) ou “Meditações metafísicas” (1641)). Desde os fundamentos metafísicos até o campo da vida prática: a moral. Desta forma, ele obteria conhecimento claro e seguro sobre tudo.  Sabendo que seu empreendimento tomaria décadas, ele percebeu que não poderia ficar paralisado e sem agir até obter princípios morais confiáveis. Assim, ele estabeleceu para si uma moral provisória. Ela busca se mover longe de posições extremadas, com até mesmo uma aceitação do senso comum. Respeita-se, sem aderência, aos princípios medianos que norteiam a vida social do lugar onde se vive. Como o tal conhecimento absoluto nunca chega, a moral provisória, sustentada no bom senso, acaba por se mostrar toda a moral que podemos obter. Vivemos na base do “enquanto isso”.

Outro filósofo francês um pouco anterior já tinha chegado a esta conclusão. Michel de Montaigne dizia que, se pudesse, se decidiria, mas na inconstância que encontra nas coisas humanas, só se permite ensaiar. E assim criou o gênero literário que nomeia a obra que construiu e reeditou ao longo da vida: “Os ensaios” (primeira edição em 1580). Descartes queria muito responder a Montaigne, mas sua moral provisória se parece muito com toda a moral de que podemos dispor, para Montaigne.

O empreendimento de Descartes nos mostra que o anseio do conhecimento científico moderno era atingir o grau de certeza que a fé religiosa proporciona. Como nos ensinou Nietzsche, ciência e religião não são opostos, mas animados pelo mesmo projeto de escapar da dúvida e do provisório da vida. Quem sabe disto muito bem é o senso comum que, quando ouve uma frase que começa com “estudos científicos recentes provam que…”, logo pensa que é “verdade”, quando se trata do melhor possível até aqui.

É o senso comum que sustenta o policiamento do já desgastado “politicamente correto”. Ele pode propagar princípios valiosos construídos por uma sociedade: abrigar respeito à diversidade racial ou de gêneros, o repúdio ao autoritarismo e à violência, etc. Mas, como já disse, a ênfase estará no policiamento mútuo e não no exercício de uma vida moral consistente.

Contra o senso comum? Cultura, teoria, reflexão. Contra o senso comum? Bom senso.

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