Big Data. Algumas considerações de um professor de Ciências Humanas, III. Um exemplo de pesquisa em comportamento

Pedro de Santi

Ao compreender um pouco melhor o campo do Big Data, podemos ponderar sobre seus usos e limites, promessas cumpridas e por cumprir. Os pesquisadores a que tivemos acesso advertem que Big data não significa necessariamente rich data, e que precisamos de better data.
Os usos para as ciências Humanas são promissores. Em alguns países, já são expressivos os usos sociais de grande valor em termos de fluxo de transporte, gerenciamento de recurso na área de saúde (nossa recente escassez de vacina para febre amarela, no Brasil, nos mostra que falta faz um planejamento inteligente) ou conhecimento do comportamento do consumidor.
Para um psicólogo, algo parece especialmente relevante numa pesquisa realizada nestes termos: ela dispensa a entrevista com as pessoas. Pode soar estranho tomar isto como uma vantagem, mas o fato é que, em geral, os pesquisadores ignoram um fato psicológico fundamental: nosso auto desconhecimento. Há um abismo entre o que fazemos e como representamos o que fazemos. Quando se entrevista alguém sobre o que ela faz ou do que gosta, o que recebemos como resposta é como a pessoa se auto-representa, não o que ela faz. Numa velha metáfora, podemos dizer que o olho não se vê. Estamos no ponto cego de nossa perspectiva subjetiva.
Isto nos informa novamente que sob a expressão “pesquisa baseada em dados”, tão valorizada por nós, pode ser algo bem menos consistente do que parece. Muitos descuidos podem estar escondidos, como a confusão entre dados e realidade e auto-representação e ação.
O que uma pessoa faz é mais real do que aquilo que ela diz fazer. Mais real em termos efetivos (consumo, por exemplo) e em termos de manifestar seus desejos, parte importante dos quais lhe é inconsciente. Para conhecer motivações íntimas e significados de ações é, aí sim, imprescindível uma investigação demorada e próxima da singularidade de cada pessoa. Mas, da perspectiva dos usos sociais, o dado pragmático sobre a ação efetivada já é muito significativo.

Um exemplo de trabalho que coloca em operação questões teóricas e Data Analytics de forma rica é o artigo “Connected or informed?: Local Twitter networking in a London neighbourhood”, de John Bingham-Hall and Stephen Law (Big Data and Society; July-december, 2015. In: http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/2053951715597457).
O advento do Big Data atualizou uma questão que se coloca desde que passamos a utilizar a internet doméstica. Em que medida ela produz aproximação ou distanciamento entre as pessoas. Desde o tempo da internet discada- e extremamente lenta para o s padrões atuais- surgiram programas de comunicação, como o ICQ (quando lida em inglês, a sigla soa como a onomatopeia de I seek you) e o ComVC, do UOL. Ao mesmo tempo, o mergulho no mundo virtual de salas de bate papo e games parecia a muitos promover um alheamento com relação às relações pessoais mais profundas ou íntimas. Já no século 21, surgiu a ideia de que as mídias sociais se tornaram o caminho para uma nova forma de exercício da política. A primavera árabe ou as manifestações de 2013, no Brasil, pareceram realizações deste potencial. Mas também não falta quem denuncie o quanto as mídias sociais nos colocam em contato apenas com quem pensa como nos, o que cria uma ilusão de que nossas ideias são aceitas coletivamente e, o que é pior, nos desprepara para conviver com a diferença. Daí teria derivado o discurso do ódio e intolerância que se espalha pelas redes.
O artigo de Bingham-Hall e Law se pergunta se os usos do Twitter, como mídia social, produzem vínculos de comunidade àqueles que simplesmente moram perto ou se funciona apenas como divulgação de mídia, em escala reduzida. Para isto, focaram-se num bairro de Londres (Brockley, uma área residencial), como ambiente geograficamente circunscrito. Em sua investigação, os autores diferenciariam smart citizens, organizados politicamente de citizens journalists, que seriam meros intermediários de informações.
Neste caso, concluem os autores, o uso das mídias sociais não teria criado smart citizens ou uma condição de articulação comunitária ou política. Por outro lado, o levantamento dos Twits evidenciou algo diferente, que não reduz os moradores a simples reprodutores do que recebem pela mídia. Os autores propõem que a comunidade teria formado algo de alto valor simbólico, o que chamam de “neighbourhood storytelling”: não se trata de ser instrumental politicamente, mas compartilhar opiniões, fofocas, novidades, etc. Isto gera um imaginário coletivo que transforma a área numa comunidade. Os participantes definidos por um espaço geográfico passam se sentir parte de uma comunidade por compartilharem histórias sobre eles mesmos, ainda que intermediados por um grupo menor.
Embora a reposta dos autores seja negativa, com relação à dimensão politizante do uso de mídias sociais, talvez eles cheguem a esta conclusão também por possuírem uma definição de política muito restrita. De minha parte, a definição proposta por eles de “narrativas de vizinhança” seja precisamente a característica não partidária ou profissional da atividade política que tem se desenhado no século 21.
Caso esta observação possa fazer sentido, teríamos também um exemplo sobre como os mesmos dados podem gerar inferências diferentes, quando analisados desde campos conceituais distintos. De toda maneira, sem dúvida a análise de dados de uso de uma mídia social se mostra como uma ferramenta preciosa para análises de comportamentos e movimentos sociais.

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