Bela, recatada e do lar. A ilusão da alteridade domesticada

Pedro de Santi

Disparada, a frase mais repetida em tom de deboche no Facebook na semana passada. Derivada de matéria (que não li) sobre a esposa (que não conheço nem procurarei conhecer) do provável e iminente (mas não eminente) futuro presidente do Brasil.

A frase com jeito de propaganda de eletrodoméstico dos anos 50, parece refletir os “valores” expressos na votação da Câmara do impeachment da atual presidente. Valores que seriam, por derivação, aqueles do nosso povo renovadamente conservador.

O deboche é geral, justo e recíproco. Afinal, a proposição é de um anacronismo inacreditável em sua idealização de uma feminilidade domesticada. Inúmeras paródias foram geradas para ridicularizar aquela caricatura.

A que será que serve a construção desta representação da esposa do vice-presidente? Aparentemente, a uma série de preconceitos e intenções: talvez, uma comparação com a figura mais bruta e ativa da presidente; talvez, ao fato de que chame a atenção ela ser bonita e muito mais nova do que seu marido. Nestes casos, estaria em jogo uma desqualificação da presidente como pouco feminina; do vice-presidente como um homem velho que não daria conta de sua mulher e, quem sabe, mesmo de sua esposa, como alguém que tivesse se casado por interesse. Mas, sobretudo, o recado deve ser: “mulheres, larguem deste negócio de querer ser presidentes e voltem para os cuidados do lar”. Sob o que parece ser um elogio à moça tão doméstica, uma enxurrada de fantasias veladas.

Mas não é difícil perceber que ter um outro domesticado à disposição de nossos desejos é apenas uma fantasia onipotente fadada ao fiasco. A domesticação remete à apropriação pelo lar, ao polimento das arestas naturais e espontâneas, ao fim do risco da alteridade.

Domesticado parecia o rebanho de deputados na votação do impeachment sob o olhar fleumático do pastor Cunha. Domesticado pareceu o PMDB por 13 anos e o vice-presidente por 5; com direito até à chorumela histérica sobre ter se tornado decorativo. E os domesticados citados acima, por sua vez, esperam que a entrega da cabeça da presidente na bandeja do impeachment domestique a população que vem clamando por mudanças: com isto, poderiam estancar as investigações sobre a corrupção deles próprios.

Mas dá para acreditar em algum destes domesticados?

‘Servidão voluntária’ foi a expressão clássica do francês La Boétie no século 16, para descrever sua incredulidade na passividade do povo ante seus governantes. Mas na própria expressão está a pista de seu reverso: não se trata de pura passividade, mas de vontade. Há uma dimensão desejante e ativa sob a cena.

Apresentar-se como injustiçado, oprimido ou desprezado pode ser uma posição estratégica que se reverte em superioridade moral ante o opressor. Uma vítima não é tomada como responsável por sua situação e ainda atrai compaixão.

A histérica é ativamente passiva, dizia Freud. Sob a cena da submissão e opressão da mulher, muitas vezes se escondeu alguém com o controle das situações. Certo feminismo atual ignora isto. E o homem que procura mulheres loucas para se divertir mas prefere as ‘certinhas’ para se casar, revela uma sabedoria e uma tolice: a consciência de que não dá conta do desejo feminino; e a ilusão de que pode haver um outro domesticado e que não represente riscos.

Naturalmente, se o lar domesticado chega a se concretizar, teremos uma situação tediosa e monótona na qual, afinal, o desejo vai desaparecer.

O que pode mobilizar o desejo vaidoso e inseguro do Eu é vir a controlar um outro; tê-lo controlado é aborrecido. E, provavelmente, falso.

Acreditar na imagem de uma esposa bela, recatada e do lar é tão tolo quanto acreditar na fidelidade canina de um vice do PMDB. E leva aos mesmos resultados.

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