Bela e cansada senhora

Por Pedro de Santi

Há quase um ano, escrevi para o Nota Alta Espm um texto sobre uma experiência intensa no Teatro Alla Scala, em Milão. A intensidade vinha da mistura de registros familiares, musicais e políticos. Tínhamos um maestro argentino e judeu regendo Wagner na Itália. Isto entremeado por ressonâncias familiares. Neste ano, parto de uma experiência mais sóbria, mas também funda.

Identidade sobre identidade até a beira do envelhecimento e cansaço. O cenário agora é a Ópera de Viena, numa sessão da ópera “O cavaleiro da Rosa”, do vienense Richard Strauss. A peça evoca a cidade constantemente, com seus cenários e tradições. As belas valsas que a compõem já soavam antigas quando ela teve sua estreia, em 1911.

No primeiro ato, uma bela mulher está com seu jovem amante enquanto o marido viaja. A cena oscila entre o romântico e o debochado, com artifícios para disfarçar o amante como criada quando chegam visitas. Mas com o passar das cenas, assisti a soprano norte-americana Renée Fleming brilhar como a bela senhora que canta e lamenta o passar do tempo e a consciência cruel do lento envelhecimento. A primeira cena é ressignificada: sob a cena de amor e traição vislumbramos um ânsia em voltar a se sentir desejada. A escolha de um jovem quase adolescente é segura; ele só quer mesmo aproveitar qualquer oportunidade para ter um caso. Não chega a ser um mérito para nenhum dos dois. E ela sabe que ele a trocará descompromissadamente. Embora a cantora tenha pouco mais de cinquenta anos, a personagem teria 32, enquanto o amante teria 17. Ela não é jovem, mas tampouco velha. Ela apenas é adulta há muito tempo.

A peça como um todo trata, afinal, de sua capacidade de renunciar ao amor passional e deixá-lo para os mais jovens.

Imponente, um pouco pesada, Viena traz consigo há séculos a imagem paradoxal (sobre a qual muito já se escreveu) de ser extremamente conservadora e ter dado origem a grandes inovações culturais. É a cidade onde brilharam Mozart, Mahler, Shoemberg. A cidade de Klimt, Shiele. E, sobretudo, a cidade de Freud.

A capacidade conservadora de tornar as coisas velhas e despojadas de sentido também é poderosa. Conforme se passeia pelo centro da cidade, ouve-se o assédio de pessoas com roupas estilizando o século XVIII dizendo algo como: straussmozartconzert? Lojas e mais lojas vendem toda e qualquer coisa estampando e, assim, tornando saturado e invisível o quadro “O beijo”, de Klimt. E confesso que não resisti à ironia e comprei para minhas duas filhas uma peça magistral: um clássico patinho de banheira; numa série que estilizava personagens da cidade. Meus patinhos ostentam a cara do Freud…

A oferta de consumo para turistas inclui estes souvenirs bregas e massacrantes com as mesmas lojas de marca internacionais que se encontra nos shoppings de São Paulo e de todo o mundo. Toda cidade vai ficando cada vez mais parecida. Todos os telejornais do mundo tem a mesma estrutura e locução, mesmo que não se entenda o idioma. Na tv a cabo do hotel, passeei por inúmeros canais da Europa e do oriente (incluindo um desconcertante  “Al Jazeera children”) e, afinal, tudo vai se equalizando e a entropia se impõe. Ou talvez eu também já seja adulto há tempo demais.

Ao longo do tempo, foi este excesso de identidade que precipitou a necessidade do estranhamento e da ruptura em Viena. De tanto serem caladas e para se fazerem ouvir, as histéricas explodiram em ataques no século XIX. Klimt e seus pares tentaram impor um corte com o passado num movimento chamado Secessão. E acabou virando chaveirinho e porta copo. Triste.

Não identifiquei a mim ou a nós naquela massa identitária vienense, mas pude ver com nitidez o que é conservador e o que é transgressor. E nós, que fizemos de nossa constante dissociação, ruptura e descontinuidade nossa compacta identidade? Como reconhecer entre nós identidade ou diferença?

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