Álbum de família, a vida como ela é. A verdade a serviço da crueldade

Por Pedro de Santi

Este texto se refere ao filme Álbum de família (no original “August: Osage County”, 2013) de John Wells, em cartaz no momento. Mas o título do texto apenas destaca o que a excepcionalmente feliz opção para a versão em português sugere: Álbum de família é também o nome de uma das peças de Nelson Rodrigues.

O filme é “rodrigueano” na exposição crua dos afetos que circulam numa família. O elenco recheado de estrelas e personagens interessantes, com destaque para Barbara, interpretada por Julia Roberts, que aparece envelhecida e sem o glamour ao qual estamos habituados. Como o roteiro foi adaptado de uma peça, ele é todo apoiado em longos diálogos ou conversas familiares à mesa.

Uma família se reencontra em torno da doença da mãe e do suicídio do pai; este encontro faz explodir um impressionante montante de afetos. Sem dúvida, há muito amor e vínculo, muitas histórias compartilhadas e intimidade, mas o ódio invade e rouba a cena. Inúmeras verdades inconvenientes vão sendo reveladas, em especial pela figura fortemente autodestrutiva da mãe (Meryl Streep, com o peso de ser sempre brilhante).

Ao sair do filme, veio-me a mente a ideia de que o filme mostra como a verdade pode ser usada a serviço da crueldade. A mãe parece se entregar ao gozo da crueldade e, de fato, expor a ferida de cada um sadicamente. Mas a personagem de Julia Roberts- uma das filhas- vive um drama complexo: de um lado, ela acredita estar ajudando os membros da família ao decidir o que diz ou não a cada um; de outro, ela luta para não ser igual à mãe. A tensão é constante quando as duas estão próximas. Esta luta é inglória. Não há adolescente que, em sua busca por afirmação, não clame recusar os pais e tudo o que eles significam; e não há adulto que não tenha que se haver com o espelho a lhe dizer o quanto ele se parece miseravelmente (para o bem e para o mal) com seus pais. Nossa origem é nossa marca e sina, afinal. Pior, será nosso legado aos nossos filhos e netos. Resultado, já ao final do filme a personagem acaba por se dar conta de que enquanto pensava fugir de seu destino, estava indo de fato ao encontro dele, como Édipo. Seu esforço por controlar e ser guardiã da verdade resultava também em crueldade sobre os outros. O confronto com o espelho se dá numa cena e ela, por um momento, consegue se descolar da identificação tóxica com a mãe.

É claro que o vínculo familiar é fundamental, senão no dia a dia, em geral na “hora do vamos ver”. Mas o filme explora o quanto o excesso de proximidade e intimidade potencializa mágoas, atritos, persecutoriedade, desejos, fusões. Na medida em que os filhos saem de casa e constroem suas próprias famílias, os encontros se tornam mais esporádicos, passamos a ter saudades e queremos preservar os aniversários ou datas festivas. Mas todos sabemos que estes encontros tem um alto potencial explosivo (Vide “Parente é serpente”, de Mario Monicelli, 1992). A saturação produzida por anos de convívio faz com que a tolerância seja mínima: qualquer meia palavra dispara reações defensivas e ressentidas; cada diferença atual reabre como um zíper uma cadeia de dores ancestrais. Trata-se de um campo minado. Aqueles que já perderam seus pais podem repousar sobre uma nostalgia pacificada: pode-se ter saudades do vínculo amoroso e do exemplo, agora purificados pela edição que a memória opera. Sem os riscos do convívio efetivo.

Como vi o filme perto do Natal, foi inevitável associar o encontro de família com os encontros da ceia de véspera, onde saudades e lavação de roupa suja costumam se unir à maionese e ao tender. Um paciente meu, cuja família vive espalhada pelo Brasil, disse ao voltar do encontro natalino na casa da mãe: “Foi muito legal, mas o prazo de validade vence rapidinho. Agora, ufa, só ano que vem”.

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