Ágora eletrônica: pensando um espaço democrático concreto

Carlos Frederico Lucio

Conhecidos por nos deixarem um grande legado no mais amplo espectro das possibilidades das realizações humanas (pensamento, comportamento, valores, cultura, organização social, vida política etc.), aos gregos é atribuída uma das maiores invenções no campo político: a Ágora.

Num mundo em que as decisões eram tomadas por reis e cortes, era impensável a possibilidade de que pessoas comuns se reunissem em espaços públicos para discutir as mais variadas questões, inclusive aquelas de natureza política. Reconhecida como uma revolução urbanística sem precedentes, a ágora representa a reelaboração do próprio conceito de espaço público: uma praça aberta, mescla de mercado e ponto de sociabilidade, para onde as pessoas afluíam, e ocorriam então variadas discussões sobre assuntos diversos, dos mais banais aos mais relevantes.

É assim que surge o conceito de debate público, fundamental para a construção do que viria a ser a democracia contemporânea, simbolizado pelo nome genérico que damos ao local máximo de discussão e elaboração das leis que irão reger a nossa sociedade: o Parlamento (onde se “parla“, se debate). As leis não mais são fruto da vontade divina ou de reis autoungidos, mas – pelo menos em tese – expressariam a vontade soberana da sociedade expressa, por sua vez, por meio de seus representantes

Eu não consigo deixar de ver um paralelo entre este espaço de discussão e o que ocorre hoje no ambiente virtual, particularmente nas chamadas redes sociais digitais. Afinal, trata-se de um espaço público (potenciado pela natureza da “rede virtual” – bem mais ampla que as redes concretas) em que as pessoas emitem suas opiniões, expressam seus valores e dizem o que pensam. Como na antiga ágora, não é necessário ser filósofo político, cientista social, psicanalista, economista etc. para poder se sentir à vontade de expressar suas opiniões. Entretanto, assim como na ágora grega, é forçoso reconhecer que nem todos possuem a característica da temperança, da racionalidade e até mesmo o primado da informação consistente para expressar, ainda que de forma “leiga”, suas opiniões. Isso tudo pode ser muito bem constatado nos dias que correm. E o Facebook é uma arena privilegiada para esta observação.

Assim como na época da Copa do Mundo, o Facebook agora, aproximando-se as eleições, tornou-se uma espécie de ágora brasileira em que os cidadãos discutem suas ideias, práticas, opções, visões de mundo. Longe de romantizá-lo, este espaço não revelou apenas civilidade (muita baixaria, arroubos histéricos, ofensas, manifestações de ódios e toda sorte de destempero – como é comum acontecer nas discussões de temas acalorados – e nisso, política e futebol tem muito em comum). Entretanto, apesar de não termos isso propriamente documentado, não fica difícil imaginar quantas brigas não aconteciam no debate grego antigo. A diferença, certamente, é que eles não eram registrados e abertos a um público tão extenso como o das mídias sociais digitais. Mas, certamente, muita briga voraz deveria acontecer.

Observando minha timeline no Facebook nesta época de eleições, eu pondero duas coisas:

1) De um lado, como uma ágora virtual, este espaço ampliou concretamente as possibilidades de debates, de discussões que, de outra forma, ficariam restritas aos grupos de amigos que, via de regra, já tendem a pensar de forma semelhante. Certamente, isso contribui para enriquecer as discussões. Embora, como todos sabemos, em muitos casos pode contribuir para o acirramento dos destemperos, de ódios latentes, gerando ofensas e explosões verbais. Mas, insisto, isso é uma constante nos debates em qualquer esfera e em qualquer época. Precisaríamos um bom exercício racional para poder domar este ódio e destempero nas discussões, até mesmo em nome da boa colocação de nossas ideias;

2) Do outro – e não vejo isso como demérito – ampliou na mesma proporção a possibilidade de lidarmos com as tradicionais asneiras (de todos os lados, deixo claro) do senso comum, especialmente quando fala de política. Como disse, é forçoso reconhecer que nem todos se dão ao trabalho de elaborar mais suas próprias ideias, checar inconsistências e verificar incongruências nos argumentos. As pessoas simplesmente abrem a boca e falam, ou, esticam o dedo e digitam. Até aí, tudo bem, é a liberdade de expressão. Agora, que não se irritem quando a fragilidade de seus argumentos é exposta e ele desmontado. Que compreendam que a expressão de seus argumentos revela seus valores, sua ideologia, a maneira como concebe o mundo. Afinal, como afirmei em uma conversa no Facebook: democracia não significa ausência de críticas; discordância não necessariamente significa discórdia. Do mesmo modo, opinião é só opinião; só vale pra quem a emite. Para ela transcender a esta esfera da subjetividade, é preciso que ela ganha corpo e consistência objetivos. Aí, vai-se tornando uma verdade. Mas, parece que nem todos enxergam isso. Querem que suas opiniões sejam encaradas como status de verdade e, como tal, isenta de críticas. Isso é uma longa discussão na história da filosofia.

(Como alguém já disse: em época de Copa, somos 200 milhões de técnicos; em época de eleição, somos 200 milhões de cientistas políticos.) Isso é consolidado na medida em que, diferentemente do debate clássico (presencial), no espaço digital ele ocorre de forma escrita e, portanto, fica registrado, o que abre margem para sua consolidação.

Seja qual for a maneira, se  mantivermos um nível mínimo de civilidade (e o debate escrito, pelo menos em tese, permitiria isso, na medida em que o “escrever” pressupõe um mínimo de exercício racional, possibilitando maior temperança na fala), não há dúvida que de na esfera do debate político, estas discussões nas mídias sociais digitais representam um ganho. Vejo o saldo como sendo bastante positivo.

Eu só me frustro porque gostaria de ver, na prática cotidiana, a mesma verve cidadã crítica que vejo na minha timeline do Facebook. Às vezes tenho a impressão que um espaço como este acaba virando apenas catártico: explodo, critico, xingo… mas no cotidiano continuo na mesma pasmaceira e indolência de sempre. Inclusive naquela prática das pequenas “corrupções” cotidianas, pelas quais nós brasileiros somos sempre tão conhecidos (e nos reconhecemos). Frustra-me também o fato de que, muitas vezes, as pessoas não aproveitam oportunidades como essas para exercitar sua racionalidade (controlando um pouco suas paixões) e promover o “bom debate”, aquele cuja função (como nos diálogos platônicos) é a de esclarecer, de trazer maieuticamente a verdade à tona. Pelo menos verdades mais consistentes. Fazer, como Sócrates magistralmente sabia fazer, as pessoas pensarem. Aproveitar e rever suas próprias opiniões, reavaliando seus fundamentos. Crescer como pensador. Isso sim, seria o verdadeiro e definitivo ganho.

Eu já disse isso na época da Copa: bem que nós poderíamos aproveitar este momento de efervescência do debate democrático para agirmos mais na nossa pequena esfera de influência! Pensar mais sobre nossas escolhas, sobre nossos valores, sobre o que de fato desejamos. Agir mais e cobrar menos do outro, focando mais em nós mesmos, em nossas ações.

O Brasil ganharia muito com a construção deste espaço verdadeiramente democrático. Utópico? Pode ser. Mas o que seria do mundo sem a utopia que, ao nos mover para além do possível, nos faz construir possibilidades inimagináveis.

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