Abuso sexual e sedução

Pedro de Santi

Nas últimas semanas, assistimos consternados ao reaparecimento de uma história tenebrosa que envolve um dos mais admirados diretores das últimas décadas: Woody Allen, acusado de abuso sexual por uma afilhada, Dylan Farrow. O suposto abuso teria acontecido há 20 anos e o processo não foi conclusivo. A história reaparece no momento em que o cineasta ganha evidência pela indicação ao Oscar de seu grande filme “Blue Jasmine”.

Entre a acusação e sua refutação, só de uma coisa podemos estar seguros: nunca saberemos a verdade.

O abuso sexual de uma criança está entre os crimes hediondos que provocam a repulsa de qualquer pessoa. A desigualdade de força física e entendimento, a submissão e redução de outro humano à condição de objeto sem sequer ter a consciência disto e, além disso, a certeza de que danos definitivos à constituição do sujeito serão produzidos: tudo revolta.

Nesta situação específica, somos primeiramente chamados pela empatia com a denunciante, mas ficamos divididos pela admiração pelo denunciado, que torna difícil crer que ele seja capaz de algo tão monstruoso. Ela descreve com detalhes o acontecimento, mas todos percebem que há também um componente de manipulação pela mãe, Mia Farrow. É palavra contra palavra. Ambos os lados parecem merecer credibilidade e algum grau de suspeita. Para aumentar o imbróglio, o relacionamento de Allen e Farrow acabou quando ele começou um relacionamento com outra filha adotada da mesma, com quem continua casado até hoje. Há todo um jogo entre o limite das relações familiares incestuosas: afilhados estão na fronteira entre serem e não serem filhos.

O episódio me faz lembrar de um momento crucial da história da psicanálise, que trouxe um conhecimento mais complexo da relação entre memória e desejo. No período entre 1895 e 97, Freud formulou sua “Teoria da sedução”. Todos os seus pacientes neuróticos adultos relatavam ter sofrido abuso sexual na infância. Os agentes eram sempre os próprios pais ou cuidadores muito próximos. A revelação era aterradora: a violência sexual é mais frequente do que se admite e acontece primariamente em casa. Hoje temos mais informações que reafirmam esta realidade.

Mas, com o passar do tempo e da experiência clínica, Freud se deu conta de que muitas das narrativas de abuso não “fechavam”. Datas, personagens, confrontos com a memória de outras pessoas faziam com que se suspeitasse da verossimilhança dos relatos.

Afinal, foi se revelando que a memória não é um mecanismo capaz de reter com objetividade representações de acontecimentos. Para começo de conversa, a própria experiência é subjetiva, interpretada por um sujeito ativo na organização daquilo que percebe. E então, com o tempo, as representações registradas são ainda deformadas e confundidas com outras, fantasiadas. Quando nos recordamos de algo, a lembrança não é buscada num banco de dados, mas é então construída como composição entre o contexto presente da recordação e os traços de memória. Ao resultado disto, Freud chamou “realidade psíquica”. Com todo o componente subjetivo aí implicado, ela tem uma absoluta eficiência: movemo-nos no mundo, construímos nossa auto-estima e narramos nossa história desde nossa realidade psíquica. Não é preciso que uma memória remeta a uma realidade histórica para que ela produza efeitos, inclusive traumáticos.

De volta à questão da sedução, mantemos a descoberta de que o abuso sexual existe em grande escala dentro de casa. Mas passamos a perceber que os relatos a respeito são, em parte, reconstruções da fantasia. Em que medida? Não há índices de realidade no campo da representação.

E qual é a liga que produz a subjetividade da experiência e a deformação da memória? O desejo, responde a psicanálise.

E aqui entra a parte mais provocativa da história. A cena na qual um adulto abusa de uma criança tem como sujeito o adulto. Mas, na cena em que uma criança fantasia que um adulto abusa de uma criança o sujeito do desejo é a própria criança. De uma tacada só surge a ideia de que crianças tenham desejos sexuais e que eles envolvam as figuras dos pais.

Foi em 1897 que Freud abandonou a teoria da sedução e, de fato, entrou no trilho que o levou à psicanálise. Ao longo do século 20, houve quem dissesse que Freud se acovardou da descoberta que fizera sobre o abuso sexual no seio da família e teria recuado para a proposição da fantasia. Mas quem disse isso não entendeu o recado: o desejo sexual circula dentro de casa (e fora dela) poderosamente entre todos os membros, inclusive na criança.

Anos depois do abandono da teoria da sedução a ideia de sedução retornou, de forma mais sutil: a sedução velada nos cuidados maternos, nas fantasias circulantes pela família, no desejo de agradar os pais, naquilo que as crianças percebem estar pesando de forma tácita entre o casal parental.

Voltando ao caso de Woody Allen, Mia e Dylan Farrow, podemos imaginar que a força da situação estigmatizará sempre Allen, seja ou não verdade. Tudo indica que o antigo casal constelava triangulações com afilhadas. E podemos imaginar que Dylan pode mesmo se lembrar do abuso, sem que isto ainda confirme o acontecimento.

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