A prisão do Lula: um fetiche coletivo

Pedro de Santi

Na última sexta, o ex-presidente Lula foi levado sob coação para depor. Depois de cerca de três horas, foi liberado.

Depois de tanta discussão a respeito em jornais e mídias sociais, gostaria de deixar mais uma pequena contribuição desde minha perspectiva psicanalítica.

A cena da prisão do Lula parece ter se tornado um fetiche, tanto para quem lhe apoia ou não. Aparentemente, todos esperavam por isto com grande excitação; talvez, desde o “Mensalão”, há dez anos. Li no fim de semana um post do respeitado filósofo Renato Janine Ribeiro criticando a condução do ex-presidente à… Curitiba (o que não houve). Outros posts diziam que finalmente se atingiu o núcleo duro da corrupção. De todos os lados, havia um fascínio pela cena.

Por quê chamo a relação com esta cena de ‘fetiche’? O termo deriva de feitiço, encantamento, algo em que se fica fixado irresistivelmente. Em psicanálise, fetichismo descreve uma condição erótica condicionada pelo reencontro com uma cena extremamente específica. A excitação extrema ligada à cena cria um caráter compulsivo.

O velho Freud ampliou o conhecimento do fetichismo teorizando como o objeto de fetiche é escolhido e a que serve a fixação a ele. O objeto do fetiche seria escolhido por contiguidade ao encontro terrível com a falta (o que chamamos de castração simbólica). Em português, isto quer dizer que a cena do fetiche seria a última coisa vista logo antes da percepção do horror da incompletude. E é exatamente para evitar seus efeitos que nos deteríamos na imagem anterior.

O fetiche procurar ser a recusa do real que se impõe à nossa onipotência.
Voltemos à cena “Lula preso”. Para seus opositores, a fixação nesta cena e meta permite que ignorem que o buraco é mais embaixo e que ele está longe de ser o “núcleo duro da corrupção”. Nossa corrupção se espalha pela história brasileira e pela nosso cotidiano, nas pequenas e grandes vantagens que buscamos obter (sim, em primeira pessoa). O que haveria para depois da queda de Lula e do PT? A crise econômica e de governabilidade são muito anteriores e maiores.

Para aqueles que têm Lula como um líder, a notícia de sua prisão fez com que todo o contexto de revelação dos descaminhos do poder fosse esquecido. Mesmo aqueles capazes de autocrítica até a véspera tiveram sua reflexão zerada pela cena da prisão. É quase como se tivesse havido um alívio: a alegada arbitrariedade da prisão temporária teria restituído Lula e o PT a seu contexto de origem, em luta contra o regime militar. As denúncias de que estejamos vivendo num “Estado de exceção” nega o simples fato de que o PT ocupa poder federal há treze anos.

De réu, Lula passou a mártir.

Centrar as atenções no “nós contra eles”, como se a única questão do país fosse o PT se manter ou não no poder nos ajuda a nos mantermos afastados de uma avassaladora realidade bem mais dura e difícil. Seduzidos pelo fetiche, nem começamos a pensar.

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