A Imagem que falta – Um dos maiores filmes políticos de todos os tempos

Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

Um escritor pode guardar por anos ou décadas um manuscrito, sem mostrá-lo a ninguém. Pode morrer sem publicá-lo. Pode recomendar, ainda, como o fizera Kafka, que seus textos inéditos fossem destruídos após sua morte. Mas um filme só existe quando exibido para o público. Por isso, nenhum diretor de cinema existe no anonimato. Para ele existir, precisa de um público, mesmo que este seja mínimo, circunscrito às minúsculas salas de cineclubismo espalhadas, em geral, por umas poucas cidades da Europa e dos Estados Unidos e, em número ainda mais reduzido, por outros continentes.

No Brasil, estas salas quase desapareceram e tentativas, como a realizada pela Prefeitura de São Paulo, há alguns anos, de criar salas de cineclube, têm redundado em fracasso. Nesse contexto, o Centro Cultural Banco do Brasil é uma referência mundial de qualidade em cineclubismo. Caixa Cultural, Centro Cultural São Paulo e Instituto Moreira Salles são outros espaços de destaque entre nós.

E foi no Centro Cultural Banco do Brasil que aconteceu, em novembro de 2013, uma grande retrospectiva do diretor cambojano Rithy Panh, no embalo de sua premiação no último Festival de Cannes por A IMAGEM QUE FALTA. Este filme foi apresentado em apenas duas sessões. Agora está em cartaz pela primeira vez, no ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA AUGUSTA, num único horário. E isso ainda só foi possível pelo fato mais do que surpresa de o filme ter sido indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Foi indicado, mas não abocanhou a estatueta, que ficou com A GRANDE BELEZA, infinitamente mais próximo dos cânones da Academia.

 

OS MAIORES DOCUMENTÁRIOS DO CINEMA POLÍTICO

Se um filme precisa do seu público, então não existe, pelo menos em tese, filme totalmente desconhecido. E quando pensamos em filmes políticos, não raro documentários, os títulos incontornáveis se apresentam.

Claude Lanzmann demorou 15 anos para realizar sua SHOAH, que, ao longo de suas nove horas e dois minutos de duração, não exibe nenhuma imagem dos extermínios em massa consumados pela máquina de guerra nazista. Percorrendo os lugares onde existiram os campos de concentração e ouvindo o depoimento dos sobreviventes, fez um filme em que a memória surge como a afirmação da espécie humana contra a barbárie.

Patricio Guzmán era um dos jovens que foram levados pelas forças de Pinochet ao Estádio Nacional, onde foram reunidos os primeiros prisioneiros após a queda de Allende. Guzmán conseguiu chegar à França, as imagens que ele havia registrado antes e durante o golpe posteriormente foram contrabandeadas para a Europa. Dessas experiências e dessas imagens nasceu A BATALHA DO CHILE, considerado, em geral, por críticos e especialistas, o maior documentário político já realizado. Ainda vivendo em Paris, hoje, aos 72 anos, Guzmán continua a dedicar sua vida a um único projeto: a memória da história política recente do Chile.

CORAÇÕES E MENTES, de Peter Davis, já nasceu clássico, tendo permanecido até hoje como o registro mais importante da Guerra do Vietnã. A TRISTEZA E A PIEDADE, de Marcel Ophuls, produzido originalmente para as TVs da Alemanha e da Suíça, desnudou a máscara propagandeada por De Gaulle sobre a unidade da nação francesa na luta pela Resistência durante a ocupação nazista.

Ainda pouco reconhecida (e praticamente inédita no Brasil), a pentalogia de Fernando Solanas (MEMORIA DEL SAQUEO, LA DIGNIDAD DE LOS NADIES, ARGENTINA LATENTE, TIERRA SUBLEVADA – PARTES I e II) sobre o desmantelamento da Argentina promovido pela política econômica do FMI, talvez num futuro não muito distante passe a integrar a lista dos grandes filmes políticos de nosso tempo.

Mas eis que chega às telas A IMAGEM QUE FALTA, do diretor cambojano Rithy Panh. Se os filmes acima mencionados, com exceção da SHOAH, encerram um inegável valor por seu riquíssimo material de arquivo, o desafio de Rithy Panh foi realizar uma película com parcos materiais de arquivo, o que já está sintetizado no título. Como ocorre em toda a sua cinematografia, sua história pessoal se funde com a do seu país, o Camboja. De modo mais preciso, com o regime do Khmer Vermelho, que governou o Camboja, dito então Kampúchea Democrático, entre abril de 1975 e janeiro de 1979.

 

O CINEMA DE UM SOBREVIVENTE

Rithy Panh é o único sobrevivente de uma família inteira eliminada pelo regime do sanguinário governo do Khmer Vermelho. Sua história é a voz, os olhos, a consciência e a memória de dois milhões de vítimas trucidadas, em sua maioria, a golpes de enxadas, facões e outros instrumentos rústicos, pois na contabilidade do regime as balas custavam mais caro. A imagem que falta é, no plano individual, a da família. No plano coletivo, a do país, já que os homens e mulheres do Camboja foram reduzidos, como se diz no filme, a seres de metal, números, combatentes da Revolução. Falta também a imagem de país no sentido institucional, já que todas as instituições (família, religião, escola, justiça) foram eliminadas. Durante os quatro anos de terror do Khmer, só existiu a Angkar, “a cúpula da organização”, que determinava cada passo de cada cambojano.

A tomada do poder pelo Khmer Vermelho e o posterior genocídio foram precedidos por duas guerras: a Guerra do Vietnã e uma guerra civil no Camboja. Em 1968, a presença americana no Vietnã chegou ao seu ponto mais extremado, com 550 mil soldados. Quando Richard Nixon assumiu a presidência, em 1969, prometeu por fim à guerra. Na prática, ele a estendeu ao Camboja, uma vez que este estava acolhendo norte-vietnamitas comunistas. O governo americano argumentava que dois grupos comunistas, cambojanos e vietnamitas, estavam unidos. Numa série de operações conhecidas pelo nome genérico Menu (Operação Café da Manhã”, Almoço, Lanche, Jantar, Ceia) os Estados Unidos realizaram 3875 ataques contra o Camboja nos 14 meses seguintes.

Pouco antes, Nixon aprovara o golpe de Lon Nol contra o príncipe Sihanouk, que há muitos anos governava o Camboja. Lon Nol era, na verdade, um ditador corrupto, como tantos líderes fantoches apoiados pelos Estados Unidos pelo mundo afora. Em abril de 1970, deu-se a invasão terrestre dos Estados Unidos no território do Camboja, desencadeando uma guerra civil que se estenderia por cinco anos. De um lado havia Lon Nol e as forças americanas; do outro, os comunistas e um pequeno grupo revolucionário radical, cujos líderes haviam entrado em contato com o pensamento maoísta em Paris. Eram, em sua maioria, jovens descontentes com o regime autoritário do príncipe Sihanouk.

Em 1973, a inflação no Camboja beirava os 300% ao ano, o sistema de transporte estava em colapso e a ajuda americana representava cerca de 95% da renda do governo de Lon Nol. É nesse contexto que o os rebeldes do Khmer Vermelho conquistam o apoio de parte significativa dos cambojanos. Por outro lado, o príncipe Sihanouk, que era um homem culto e apresentava uma imagem política equilibrada, anunciou uma aliança com o grupo revolucionário. Essa coalizão pareceu, a muitos, uma saída sensata para a grave crise que o país atravessava.

Relatos das ações do Khmer, que já havia incendiado centenas de aldeias no norte do país, fizeram as missões diplomáticas estrangeiras a começar a abandonar a capital, Phnom Penh, em abril de 1975. Nos dia 21 de abril só restava a embaixada francesa, onde 1300 pessoas haviam se refugiado. A ordem do novo regime foi clara: ou as autoridades francesas expulsavam os refugiados, ou morreriam todos de inanição. Os portões foram abertos e as autoridades, incluindo o primeiro-ministro Sirik Matak, foram executadas sumariamente. Os demais foram separados e deportados. Os radicais comunistas do Khmer Vermelho tinham chegado ao poder e não cumpriram o compromisso de uma coalizão com o príncipe Sihanouk.

 

O HORROR COMO O MUNDO CONHECEU POUCAS VEZES

A primeira ordem foi para esvaziar Phnom Penh. A cidade, que tinha 600 mil habitantes, mas comportava agora quase dois milhões (pessoas de todo o país tinham acorrido para ali, assustadas pelos relatos das atrocidades do Khmer na área rural), começou, sob a mira dos fuzis, a ser evacuada. A marca do que poucas vezes a humanidade vira, foi dada pelo Hospital Calmete, o principal da cidade. Sob a mira das armas os pacientes foram obrigados a abandoná-lo. Alguns carregavam seus entes, outros, sozinhos, transportavam seu soro; e logo as estradas foram ficando eivadas de cadáveres. Phnom Penh tornou-se, em poucas horas, uma cidade fantasma e pelos quatro anos seguintes ali só existiria a Angkar e a Tuol Sleng (conhecida como S-21), uma ex-escola de meninos que se tornou o centro de detenção, tortura e execução dos prisioneiros políticos.

Os líderes do novo regime puseram então em prática sua cartilha, nascida nos bancos da Faculdade de Filosofia da Sorbonne, onde assimilaram a ideologia maoísta. O programa era criar o primeiro país verdadeiramente democrático, onde todos seriam iguais e estariam organizados em torno do bem comum e no qual a propriedade seria abolida. Uma síntese das teorias marxistas e rousseaunianas: a supressão da propriedade privada e a “volonté générale”.

O Khmer explodiu o Banco Central do Camboja. O sistema financeiro, a moeda, as transações comerciais foram abolidas. O comércio foi proibido, os estabelecimentos fechados, as cidades esvaziadas. Todas as escolas, livros, filmes, músicas e quaisquer manifestações artísticas foram destruídas. A religião e os monges (que tinham uma tradição milenar no país) foram interditados. Os templos foram transformados em silos. Era preciso criar o novo homem. Todas as pessoas tiveram seus cabelos cortados uniformemente e suas roupas tingidas de preto. As famílias foram separadas: homens, mulheres, crianças, adultos, idosos. “Não há mais pai, nem mãe, nem irmão. Logo não haverá mais emoção. Nem pessoas. Apenas números. Trabalhadores revolucionários”. Óculos, livros, brinquedos, tudo foi proibido. As pessoas receberam um novo nome e podiam portar um único objeto: uma colher. Apenas uma colher; panelas não eram permitidas, eram símbolos, segundo o regime, do individualismo burguês.

Anuncia-se a criação de um novo país coletivo, no qual não existirão mais homens, nem mulheres, nem crianças ou idosos. Apenas trabalhadores. “A caneta é a pá, o caderno o arrozal”. As pessoas que usam óculos ou que cursaram o equivalente à sétima série são consideradas potenciais inimigos do regime e, por segurança, são executadas. A cúpula política é toda exterminada. Profissionais liberais, intelectuais e artistas devem ser reeducados nos campos de trabalho. É proibido falar, as línguas são proibidas. Agora só é possível se comunicar utilizando-se dos slogans do regime. A memória é proibida. Sim, está no estatuto do regime: não é permitido nenhuma lembrança. O homem do passado, que conheceu a propriedade e toda a corrupção burguesa, deve ser eliminado para dar lugar ao homem puro, coletivo. Os remédios são invenções capitalistas e por isso são proibidos. Só são permitidos os medicamentos desenvolvidos pelo regime e produzidos a partir de raízes. As cobaias são os próprios cambojanos. Aos prisioneiros reserva-se a sorte que os nazistas impunham às suas vítimas: experiências crudelíssimas, como a dissecação de pessoas vivas, sem anestesia, deixando-as estertorar até a morte.

Os trabalhadores são obrigados a cultivar os arrozais, escavar poços, criar represas, explorar as florestas, numa rotina que em média chega a 16 horas por dia, incluindo as crianças. A ração diária equivale à dos campos de concentração nazista: 250g de arroz, para serem divididas por 7, depois 16, mais tarde 25 pessoas. Nos rios há peixes, mas a pesca é proibida. Aos doentes e idosos, reserva-se apenas metade dessa quantia. A morte cresce, mas ela não importa ao regime. Importam números: o objetivo é elevar a população de 7,7 para 20 milhões de habitantes. Os encontros e namoros são proibidos. Há apenas os casamentos coletivos determinadas pelo próprio governo. O arroz é cultivado, milhares de sacas são exportados. À população, destina-se apenas a ração suficiente para mantê-los vivos, a fim de que possam continuar a produzir.

A fome grassa por toda parte em meio às rotinas extenuantes. Rithy Panh, que viveu num desses campos quando criança, recorda: “Éramos levados para uma área onde devíamos produzir três metros cúbicos por dia de fertilizantes, obtidos a partir de árvores, folhas e vacas. Mas não havia árvores e vacas suficientes para atingir a cota. E se não a atingíamos, a cota era elevada para cinco metros. O número era impossível, e então vinham as chicotadas”.

Premidas pela fome, as pessoas arrancavam raízes e as comiam escondidas, caçavam ratos, lesmas e caracóis e os comiam crus. O diretor também trabalhou num hospital, e guarda a lembrança de um vizinho de cama que teve o joelho roído pelas larvas até a morte. Os horrores da fome, das privações, das torturas e da morte estão na memória dos sobreviventes. Há algumas imagens oficiais obtidas por determinação de Polt Pot, para ele ver o seu regime em ação: são imagens de campos de trabalho e que denunciam, por trás do entusiasmo da propaganda oficial, a fome, a extenuação, o desespero saltando de olhares vazios. O cinegrafista oficial que as realizou, posteriormente foi executado.

As imagens mais contundentes simplesmente não existem. Só podem ser imaginadas, como indaga o diretor: “Quem filmou as crianças gritando de fome? Quem filmou os templos destruídos ou transformados em silos? Quem filmou as jovens abandonadas no meio da noite e que não conseguiam parir e por isso esmurravam a barriga até a morte?”

Tudo se organiza em torno da criação do homem puro do Kampúchea Democrático. Seu líder, Polt Pot, vive numa cabana rudimentar, iluminada por uma lâmpada a óleo. Ele bebe chá e toma banho ao ar livre. Cercado pelos livros da doutrina maoísta, por suas armas e seus camaradas. Ele vive a ideologia, ele é a ideologia.

 

TORTURAS E EXECUÇÕES

Em pouco tempo os cambojanos que um dia tinham sido seres humanos, estavam reduzidos a farrapos humanos, desumanizados, dominados pela fome, pelas doenças e, sobretudo, pelo terror. Como sempre aconteceu em todos os regimes comunistas, exige-se a autocrítica e as delações, instaurando-se uma lógica perversa em que todos são inimigos de todos, exceto do regime. As confissões e a lista dos traidores do regime eram obtidas sob tortura: “Tudo começa com a pureza e acaba com o ódio”, diz o diretor do filme, a certa altura. “Nas prisões se eletrocuta, se corta, se faz comer os próprios excrementos para se obter as confissões”. Muitos acusados, eram, como sempre acontece em situações desse tipo, inocentes. O torturado, no indizível da dor física ( o estatuto do Khmer proibia também os gritos durante os suplícios) e psicológica acaba “confessando” o que o torturador deseja ouvir.

O regime de Polt Pot forjou uma realidade compatível com o seu desejo. E na sua loucura, forjou até a natureza. Trabalhadores foram obrigados a escavar poços durante meses, sem que jamais uma única gota de água fosse encontrada. Eram obrigados a se deslocar periodicamente de um campo para outro, a fim de evitar qualquer articulação entre si: “Como seria possível nos revoltarmos, quando tínhamos apenas uma colher e uma roupa preta?”

Os meios de criar o terror, torturar e matar se pautavam por requintes de crueldade. Aos presos políticos era destinada uma morte lenta, a fim de que realizassem mais confissões. As crianças era mortas juntamente com os pais condenados. As crianças tinham as cabeças esmagadas contra árvores. Os adultos eram degolados ou mortos a golpes de enxadas, foices, facões e outros instrumentos agrícolas. E para mostrar que todos deveriam cumprir as determinações, alguns executores eram crianças de 6 anos. A falta de força para desferir os golpes fazia então com que as vítimas às vezes agonizassem por um bom tempo antes de encontrarem a morte. O termo morte, aliás, era proibido. O regime impusera o termo destruir. Morte é um termo que poderia ser empregado também para indicar a morte de um animal. Mas destruição é semanticamente mais forte, pois implica eliminação. E as inscrições sobre as fotografias das vítimas nos registros oficiais, como hoje pode ser comprovado no Museu de Tuol Sleng, em Phnom Penh, ostentam a informação: “destruída oficialmente”.

 

A FORÇA DA FORMA

A arte sabe desde sempre que boas ideias de nada valem nas mãos de artistas medíocres. O cinema, talvez mais do que qualquer outra arte, leva essa evidência ao limite. Ideias banais podem se transformar, quando convertidas em imagens e sons, em obras-primas. Bons romances nunca dão bons filmes; são os romances medianos que dão liberdade ao diretor para criar filmes excelentes, sempre sentenciou Godard.

Relatos existem aos milhares. Mas o talento de Rithy Panh, ao fundir sua história pessoal com a do Camboja, transforma o genocídio em algo que extrapola as fronteiras do seu país. Historiadores estimam em cerca de dois milhões o número de vítimas do Khmer Vermelho, aproximadamente 25% da população do país. Quando falamos de genocídio, há o número das vítimas que não sobreviveram, há os sobreviventes e há nós outros, que não vivemos aquela experiência e só podemos conhecê-la pelo relato das vítimas. Podemos, assim, aproximar os relatos, a consciência e apelar para nossa imaginação. Mas, por mais poderosa que esta seja, jamais nos fará entrar nos corações e mentes daqueles que sentiram pulsar na carne e na alma as experiências do horror. Os relatos recolhidos por Claude Lanzmann na SHOAH; a reconstituição das atrocidades do rei do Leopoldo II evocadas pela inventividade de Joseph Conrad em O CORAÇÃO DAS TREVAS, e, mais recentemente, n’O SONHO DO CELTA, por Vargas Llosa; e os requintes de desumanidade aplicados pela Savak, a polícia secreta do Irã, ao longo do século XX, e relatados em O XÁ DOS XÁS, de Ryszard Kapuscinki, permitem apenas uma aproximação entre o espectador e/ou leitor e as vítimas que protagonizam esses relatos.

Rithy Panh é um sobrevivente do genocídio no Camboja. Sua família desapareceu. O pai decidiu morrer de fome, duas irmãs também morreram de fome, a mãe e os demais parentes em função da debilidade causada pela fome. Ele passou os quatro anos do regime em diversos campos de trabalho, à mercê das privações, suplícios e terrores do regime. Chegou a Paris ainda jovem e, tal como Patricio Guzmán, dedicou sua vida à memória do Camboja. Entre mais de duas dezenas de filmes, realizou S-21 A MÁQUINA DE MORTE DO KHMER VERMELHO e DUCH, O MESTRE DAS FORJAS DO INFERNO (ambos com edições em dvd na França e nos EUA). O testemunho do diretor é, portanto, o de um sobrevivente a quem o horror não conseguiu eliminar a memória. Contrapondo os seus primeiros anos aos anos Khmer, ele evoca: “No mundo da minha infância as pessoas tinham bocas. Elas riam e falavam. E se beijavam. (…) Há muitas coisas que um homem não deveria ver ou ouvir. Se as visse, seria melhor estar morto. Mas quando não podemos escolher e as vemos, temos o dever de contá-las. Essa imagem eu a dou a você, para que ela não deixe de existir”.

Essa imagem que falta (a da família desaparecida, do país desaparecido, da memória proibida) surge do filme, da costura das imagens ausentes, da família, amigos e compatriotas revividos nos pequenos bonecos esculpidos em madeira, dos obsedantes cheiros da comida guardada na memória enquanto saciava a fome com raízes e lesmas, da música que o horror não conseguiu fazer desaparecer. A reconstituição, na qual se alternam relato, animação e as poucas imagens dos arquivos oficiais, é acompanhada pela narração sóbria de uma voz que fala pelos dois milhões de cambojanos silenciados. Fala pelos judeus da máquina nazista, pelos nativos do Congo e de toda a África, dos índios das três Américas, pelas vítimas do regime ditatorial do Miamar e pelos 200 mil prisioneiros alimentados com alguns grãos de milho e arroz, submetidos a torturas diárias e obrigados a trabalhar até a morte nos atuais campos de trabalhos forçados da Coréia do Norte neste momento em que você lê estas linhas.

O filme problematiza várias questões. Quando lemos o Marquês de Sade, ficamos enjoados com as descrições pormenorizadas das sessões de sodomia, com o escatológico e todo tipo de monstruosidades. Temos a impressão de que estamos diante dos registros de um psicopata e não de um cérebro lúcido. Mas a última coisa de que se poderia acusar o Marquês era de falta de lucidez. Sade sempre esteve consciente do que escreveu. E sua intenção era mostrar o que acontece quando os homens podem exercer sua liberdade sem qualquer limite. E se assim consideramos suas narrativas, elas revestem-se de um enorme valor político e se afirmam como um alerta sobre as ilusões da racionalidade iluminista. Racionalidade, aliás, foi o que norteou os escritos dos “técnicos” nazistas. Haverá algo mais racional que o planejamento de uma câmara de gás disfarçada de banheiro?

 

UTOPIA E REALIDADE

Quando Jean-Jacques Rousseau formulou as teorias do CONTRATO SOCIAL, em 1762 (um pouco antes do surgimento dos chocantes textos do Marquês), e postulou a igualdade, a liberdade e a vontade geral (“volonté générale”), estava teorizando sobre a utopia de uma felicidade coletiva. O conceito da “volonté générale” pressupunha o desejo coletivo como um desejo do povo. Mas o desejo do povo não é necessariamente o desejo da maioria. E o lugar que seria ocupado pelo debate promovido pelos partidos políticos passa a ser preenchido pela “volonté générale”. Mas o que acontece quando num Estado totalitário o partido único se autoproclama o porta voz da vontade do povo? A ditadura do Khmer Vermelho talvez tenha sido a mais trágica ilustração dessa utopia levada ao limite.

A barbárie perpetrada pelos radicais comunistas desperta ainda mais indignação quando consideramos que a doutrina foi aperfeiçoada pelos seus líderes dentro das salas de aula da Sorbonne, um dos templos da história do conhecimento humano. A insatisfação humana com a realidade, as infinitas dicotomias entre o sonho de uma realidade perfeita em confronto com as misérias da vida concreta, sempre foram o substrato da fantasia, da arte e, no limite, da política. Mas o sonho e as utopias (sejam artísticos ou políticos) não podem simplesmente solapar a realidade. Mario Vargas Llosa analisa esta questão num artigo sobre a globalização intitulado “Abaixo a Lei da Gravidade”, reunido no livro SABRES E UTOPIAS – VISÕES DA AMÉRICA LATINA:

“(…) Rechaçar a realidade, empenhar-se em substituí-la pela ficção, negar a existência verdadeiramente vivida em nome de uma outra, inventada, afirmar a superioridade do sonho sobre a vida objetiva, e orientar a conduta com base nessa premissa, eis a mais velha e a mais humana das atitudes, aquela que gerou as figuras políticas, militares, científicas e artísticas mais atrativas e admiradas, os santos e os heróis e, talvez, o principal motor do progresso e da civilização. A literatura e as artes nasceram dela e constituem o seu principal alimento, seu melhor combustível. Mas, ao mesmo tempo, se a recusa da realidade transborda os limites do individual, do literário, do intelectual e do artístico, e contamina o coletivo e o político – o social -, tudo o que essa postura traz consigo de idealista e generoso desaparece, é substituído pela confusão, e o resultado, geralmente, é aquela catástrofe em que desembocaram todas as tentativas utópicas na história do mundo.

A opção pelo impossível – a perfeição, a obra-prima, o absoluto – teve consequências extraordinárias no âmbito da criação, do QUIXOTE a GUERRA E PAZ, da Capela Sistina a GUERNICA, de DON GIOVANNI, de Mozart, à segunda sinfonia de Mahler, mas querer moldar a sociedade ignorando as limitações, contradições e variações do ser humano, como se homens e mulheres fossem uma argila dócil e manipulável capaz de se ajustar a um protótipo abstrato, concebido pela razão filosófica ou pelo dogma religioso com total desprezo pelas circunstâncias concretas, pelo aqui e agora, isso contribuiu, mais do que qualquer outro fator, para incrementar o sofrimento e a violência. Os vinte milhões de vítimas com que, somente na União Soviética, selou-se a experiência da utopia comunista são o melhor exemplo dos riscos que correm aqueles que, na esfera do social, apostam contra a realidade.”

 

A REPERCUSSÃO DO GENOCÍDIO PROMOVIDO PELO KHMER VERMELHO

Raphael Lemkin foi um judeu polonês e especialista em direito internacional, que, no início da década de 1930, tentou chamar a atenção pública sobre o perigo nazista. Suas reivindicações foram ignoradas e ele abandonou a Polônia, cruzou a União Soviética, o Alasca e chegou aos Estados Unidos. Deixou para trás sua família, que posteriormente seria exterminada pelos nazistas. Em 1941, um ano antes da Solução Final, ele lutou por medidas de proteção aos judeus europeus. Outra luta em vão. Os Aliados resistiram por um bom tempo antes de começarem a bombardear os trilhos que levavam aos campos de concentração.

Após o término da guerra, ele não se deu por vencido e começou a luta pela condenação dos responsáveis pelos massacres. Ex-estudante de filologia, ele foi o responsável pela cunhagem do termo genocídio. A palavra é um híbrido que combina o derivativo grego “geno” (“raça” ou “tribo”) e o derivativo latino cídio (derivado, por sua vez, do verbo “caedere”, que significa “ato ou efeito de matar”). O termo foi usado oficialmente pela primeira vez na terceira acusação dos indiciados de Nuremberg, em 1945. O juiz condenou os 24 réus por terem “comandado um deliberado e sistemático genocídio, ou seja, o extermínio de grupos raciais e nacionais, contra populações civis de certos territórios ocupados”. Lemkin finalmente vencera a primeira etapa de sua luta, que se estenderia até sua morte, em 1959, tentando levar a julgamento outros responsáveis por extermínios em massa.

Nuremberg e outros julgamentos trouxeram à tona muitas outras atrocidades cometidas pelos nazistas e ignoradas pelo mundo. E em 1948 a ONU aprovou a Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio. Mas, infelizmente, a segunda metade do século XX é pródiga em genocídios e a ONU e outras organizações internacionais pouco fizeram para impedi-los e praticamente nada fizeram para punir os seus autores. Os massacres em Ruanda, na Bósnia e no Iraque são alguns dos exemplos mais recentes. Mas o extermínio de dois milhões de cambojanos pelo Khmer Vermelho foi o de maiores proporções desde o Holocausto.

E por que a ONU, os Estados Unidos, a Europa e os governos autonomeados democráticos nada fizeram para impedir um massacre que se prolongou por quatro anos? A indiferença foi encabeçada pelos Estados Unidos, para os quais uma intervenção no Camboja não interessava do ponto de vista dos interesses políticos. A guerra do Vietnã tivera um custo muito alto (em vítimas, despesas militares e, sobretudo, em termos do orgulho nacional ferido e rebaixado). Por outro lado, enquanto os rebeldes do Khmer dominavam o país, Jimmy Carter começava uma reaproximação com a China de Mao Tsé-Tung. A China e a Tailândia eram então os principais apoios do Khmer. A Tailândia era anticomunista mas mantinha relações com o Khmer por questões fronteiriças e para impedir o avanço comunista do Vietnã sobre o seu território. A China, por sua vez, era um aliado importante para Washington em plena guerra fria. E assim os Estados Unidos manipularam a ONU, a Europa, o Ocidente e o Oriente e, juntos, fecharam os olhos, apesar das denúncias de jornalistas e diplomatas, para as atrocidades praticadas pelo regime de Polt Pot.

Os exemplos dessa indiferença são inúmeros, mas apenas dois deles são suficientes para se entender a lógica perversa da política externa americana: em setembro de 1979, apesar de todas as denúncias dos massacres, o Comitê de Credenciais da ONU, pressionado pelos Estados Unidos, votou por 6 a 3 pela concessão de credenciais na ONU para o Khmer Vermelho. O outro exemplo ilustra a conivência entre os meios de comunicação de massa e o governo americano. Os dados estão no livro GENOCÍDIO: A RETÓRICA AMERICANA EM QUESTÃO, de Samantha Power (obra de referência sobre a política externa americana no século XX). Em abril de 1975, quando o Khmer se aproximava de Phnom Pehn, apenas os dois jornais mais importantes dos EUA, o New York Times e o Washington Post, publicaram 272 reportagens sobre o Camboja. Em dezembro de 1975, quando já não havia nenhum estrangeiro no país, esses mesmos jornais publicaram apenas 8 matérias. A cobertura das grandes redes de televisão americana foi ainda mais pífia. Nos três meses que se seguiram à instalação do regime de terror, as três principais TVs dos EUA concederam míseros dois minutos e meio de cobertura. Pior: durante os quatro anos de vigência do regime, essas redes dedicaram, juntas, menos de 60 minutos ao Camboja, o que equivale a uma média de menos de 30 segundos por mês.

Quando hoje transpomos os portões de qualquer campo de concentração nazista na Europa, ouvimos gravações sobre a importância da preservação daqueles espaços. São espaços de memória, para que a barbárie não se repita. Constatamos, no entanto, que os interesses geopolíticos dos países ricos, aliados aos interesses da grande mídia, cujos proprietários estão, sempre, em todos os países, de mãos dadas com os poderosos e genocidas, decidem quais vítimas merecem a atenção dos países autonomeados civilizados e democráticos. Ilustração viva do poder de manipulação e de como se procura desviar o grande público das “causas perdidas” e do que não interessa aos poderosos (sejam eles os agentes da guerra fria, a Comunidade Econômica Europeia ou os G8), é o que pode ser constatado pelo público que se dirigir ao ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA AUGUSTA, onde se encontra a única sala que está exibindo A IMAGEM QUE FALTA, num único horário. Há cerca de uma dezena de painéis nas bilheterias informando os títulos e os horários dos filmes em cartaz. Mas NENHUM informa que o filme de Rithy Panh está em cartaz, o que ilustra o solene desprezo do programador e do ESPAÇO ITAÚ pelo filme. Manipulação não se articula apenas nos escritórios da CIA, no Departamento de Defesa dos Estados Unidos ou na cabana de Polt Pot nos tempos do regime. Ela também é estrategicamente preparada na aparente inocência do menu oferecido nas salas de um multiplex do Terceiro Mundo. Mesmo que o país onde elas se encontrem já tenha presenciado o genocídio de alguns milhões de índios e continue a ver suas crianças iludindo a fome com um saco de cola colado à cara.

LOCAL: ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA AUGUSTA (Sala 5). Rua Augusta, 1475 – Cerqueira César

HORÁRIO: o filme está sendo exibido num único horário, às 14h00. Este horário é válido até o dia 13.03.14. Após esta data, é necessário confirmar no jornal ou pelo telefone 4564-7503.

OBSERVAÇÃO: O filme A IMAGEM QUE FALTA originou-se do livro A ELIMINAÇÃO (sem tradução para o português), de Rithy Panh. É possível, no entanto, encontrar no http://www.amazon a edição francesa (original), bem como traduções para o inglês, o italiano e outras línguas.

Para ler outros textos do Professor Veronese, acesse blog CPV (link Dicas Culturais do Verô).

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