A arte da sedução: Don Giovanni, de Mozart

Por Pedro de Santi

A ópera se baseia na personagem Don Juan, a figura mais clássica do sedutor. Espanhol como Carmen, ele traz em si uma sensualidade exótica e, como ela, não cede de seu desejo e identidade, mesmo ante a morte. Ele surgiu na peça de Tirso de Molina, “O Burlador de Sevilha e convidado de pedra”, de 1630.

Don Giovanni é um colecionador. Ele jamais se envolve com suas conquistas e desenvolve a sedução como uma técnica. Seu compromisso é com seu desejo. A arte da sedução consiste em dominar o outro e fazê-lo se desviar de seu rumo, submetendo-o ao próprio desejo, tornado desejo dele. Seu mais próximo equivalente é a personagem Valmont, de “As relações perigosas” (escrito por Chauderlos de Laclos no mesmo século XVIII e eternizado no cinema por John Malcovich).

Para efetivar suas conquistas, ele se faz passar por outra pessoa, seduz ou assedia. A ópera se inicia com uma cena obscura: Dona Ana pede por socorro no meio da noite; um estranho se fez passar por seu noivo numa visita noturna. Desta cena, deriva um duelo no qual Don Giovanni mata seu pai, o comendador que reaparecerá como fantasma ao final. Dona Ana, afinal, dá alguns indícios de que gostara da visita e enrola o noivo o quanto pode para adiar o casamento… Como cena de sedução, há a famosa e encantadora aria “Lá nos daremos a mão”. Ele seduz Zerlina no dia de seu casamento e ela estava aponto de ceder quando a cena é interrompida por uma “ex” que vem adverti-la. Esta aria tornou-se muito famosa e reaparece, por exemplo, no início do filme “A festa de Babette” (1988), quando um professor de música tenta seduzir a filha de um rígido pastor. Os efeitos perturbadores da sedução provocam um fechamento defensivo extremo por décadas em todo o vilarejo. Até a sedução voltar pelas mãos de Babette.

Como personagem da ópera de Mozart, Don Giovanni encarna o libertino. Ele tem os ideais opostos aos do cavaleiro andante e do amor cortez. Moderno e individualista, ele é um livre pensador alheio às restrições morais impostas pela religião. Ele habitou a Europa no intervalo entre a perda do poder da Igreja na regulação da vida moral e o nascimento de critérios morais para o convívio baseados na razão e na democracia, já na virada para o século XIX. Sua filosofia é a do Marquês de Sade: não ceder ante o próprio desejo, numa antecipação da máxima “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Coerente com isto, quando é intimado a acompanhar o fantasma do comendador à morte e é convidado a se arrepender, sustenta que nunca será chamado de covarde: dá a mão ao comendador e se recusa a se arrepender

Na ópera de 1787, Mozart trabalhou com o libretista Lorenzo da Ponte, com quem trabalhara um ano antes, em “As bodas de Figaro”. Talvez estas sejam suas duas maiores óperas.  Há uma série de ressonâncias, começando pela incidência de alguns temas das “bodas” tocadas por uma orquestra durante a cena de desfecho. Mais do que isto, no jogo de poder e sedução da personagem, reaparece o tema chave da ópera anterior: a luta de classes. As cenas de assédio de Don Giovanni a Zerlina e intimidação ao seu noivo Masetto remetem visivelmente aos abusos de poder da personagem Conde de Almaviva ante Figaro e Suzana, na ópera anterior. Aqui, a ópera ganha conotação política por mostrar a decadência da aristocracia na proximidade da revolução francesa. Nas duas óperas (como na terceira colaboração entre Mozart e da Ponte, “Cosi fan tutti”) há o recurso da “peça dentro da peça”, como era tão comum em Shakespeare. A representação dentro da representação acaba por evidenciar o jogo simbólico do teatro e sugerir que a própria vida seja apenas uma representação.

Don Giovanni tem um parceiro: Leporello. Ele funciona de forma muito parecida com Sancho Pança, de Don Quixote. Trata-se de um duplo cômico. Ante o herói da narrativa, ele proporciona algo como uma “escala humana”; é um homem comum, com seus medos e vulgaridades, que acompanha as desmesuras do herói. Leporello possui passagens hilárias. Para convencer uma “ex” de Don Giovanni a desistir de esperar por ele, canta a “Aria da lista”, na qual enumera o perfil colecionador das conquistas do patrão. Tipos físicos, idades, nacionalidades, tudo é cuidadosamente catalogado: o preenchimento de itens da lista é mesmo uma motivação específica para determinadas conquistas.

O desfecho da ópera tem o mesmo roteiro que o de “As relações perigosas”: após assistirmos a um retrato de “a vida como ela é”, há uma guinada moralista e Don Giovanni é punido. O subtítulo da obra é, justamente, “O dissoluto punido”. A situação é ambígua: pode ser que o libretista tenha querido mostrar que os maus se dão mal no final; mas o mais provável é que seja apenas uma concessão à censura e moralidade daqueles que, embora se reconheçam na trama, reagiriam com indignação hipócrita.

Para responder a este final moralizante, José Saramago escreveu uma peça chamada “Don Giovanni ou o dissoluto absolvido” (2005). Nela, o sedutor é absolvido ao ser mostrado como alguém que se apaixona a cada vez, assim como ao estender a dissolução moral a todos os demais personagens. Todos percebem a necessidade de reconhecimento de Don Giovanni e, então, queimam a lista, numa ferida narcísica mortal. Por fim, ele perde sua identidade e é humanizado e salvo pelo amor de uma mulher comum- Zerlina- e passa a responder simplesmente por Giovanni. Ecos da redenção pela vida comum, presente em “A paixão segundo Jesus Cristo”, do próprio Saramago.

A relação entre Don Giovanni e o fantasma do comendador- a quem matou e a cuja estátua convida para jantar- remete imediatamente a Hamlet e a questão do pai morto. O imperativo moral que inibe e pune pelos excessos do desejo parte da figura paterna, mais temida morta (internalizada) do que quando viva. No belíssimo filme “Amadeus”, de Milos Forman (1985), esta relação é amplamente explorada.

Por fim, há a música. E ela é espetacular. A música não é fundo ou ambientação, ela é personagem. Timbres e instrumentos dialogam com as personagens e com a ação. A introdução já nos coloca no ambiente sombrio do final e se modula para a leveza da sedução. Seguem-se arias de ousadia, de humor, de lamento das amantes seduzidas e abandonadas. A variedade de estilos e humores produz uma obra ágil. Os 15 minutos da cena da ceia são vertiginosos com as vozes de Don Giovanni, Leporello e o fantasma do comendador, muitas vezes em trio, cada um expressando algo distinto. A tensão é sustentada até o fim. Trata-se de uma obra monumental, de grande intensidade emocional e, como seria de se esperar, de irresistível sedução.

Serviço: “Don Giovanni” no quarto encontro do ciclo Ópera e Paixão, com Celso Cruz e Pedro de Santi (apoio de Heraldo Bighetti). Quinta-feira, 19/09, às 16:30, na sala B 104. Vale Acom.

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