v. 1, n. 2 (2013)

João Matta

Dizem que eu sou culpado deste debate. A culpa é de um artigo, que eu escrevi. Na verdade, um pequeno artigo sobre a ideia de narcisismo. É preciso saber que conceito é esse, cruzando com a ideia de uma sociedade do espetáculo pensada por Dèbord. Mas, uma sociedade do espetáculo diferente da do Dèbord, porque vivemos hoje em uma sociedade do espetáculo com algumas variações da que ele propôs lá nos anos sessenta. É mais ou menos esta a ideia do artigo.

De onde vem esse caminho? No mestrado e doutorado acabei trabalhando com consumo dos jovens. No meu mestrado, mais com construção de celebridades na internet. Já no doutorado, com redes sociais ligadas ao consumo a partir de um olhar muito mais da antropologia do que propriamente de um olhar da comunicação mercadológica ou da economia.

Nessas andanças, de mestrado e doutorado fui chegando, via análise do discurso, na questão discursiva, do simbólico, do imaginário, do real trabalhados por Lacan e indo até o Freud, aonde ele fala do mal-estar, na verdade, o mal-estar da cultura. Ele trata de uma cultura e de um sujeito moderno reprimido da questão do gozo. E o Lacan traz uma ideia do inverso da proposição de Freud. Teríamos, atualmente, um sujeito contemporâneo, que alguns chamam de pós-moderno, levado por um imperativo ao gozo. Quando trato deste tema com os alunos em aula, discutimos o fato de antes termos sido proibidos de gozar e havia, então, uma repressão ligada a questão direta sexualidade reprimida.

Atualmente, ao contrário, gozar não é uma questão de permissão apenas, mas de obrigação. Ser feliz virou algo da ordem da opressão. Ser feliz, como a própria Maria Rita Kehl nos fala, tornou-se opressão social, algo do obrigatório. Por exemplo, às segundas-feiras de manhã você tem que ser feliz, independente da realidade que traz um dia chato em qualquer lugar do mundo. Mesmo você indo a trabalhar em Paris, passando pelo arco do triunfo, aquele trânsito louco na segunda de manhã, mesmo xingando o outro motorista em francês, que é mais chique, traz uma realidade difícil de nos fazer felizes e agradecidos por termos acordado cedo para ir trabalhar.

Paralelo a tudo isso que estudei em meus mestrado e doutorado, meus anos de contato com a Psicanálise me levaram à leitura da obra de Freud e cheguei, finalmente, ao narcisismo que é tema deste artigo. Meu contato com a psicanálise, deu-se, primeiramente, por anos na horizontal, deitado em um divã. E, mais recentemente, na formação que curso no Instituto Sedes em São Paulo. E meu interesse pela conexão entre os Narcisismo e Sociedade do Espetáculo veia da minha leitura de um livro chamado Narcisismos do prof. Oscar Miguelez, que teve como tema principal de seu doutorado o conceito de Narcisismo. Ele defende uma questão muito interessante referente ao narcisismo, principalmente no contemporâneo, onde há uma compreensão diluída pelo senso comum que nos nomeia como uma suposta “Sociedade narcisista”, que estaria ligada à ideia de uma “Sociedade individualista”.

O narcisismo propriamente dito virou quase que um xingamento, tornou-se algo negativo. Se você falar que um sujeito é narcísico, este pode se ofender. Quando você lê com mais atenção os escrito do Dr. Freud, o narcisismo pra ele não é algo da ordem do que é quantitativo, é uma qualidade que se movimento. O narcisismo é dinâmico e estrutural dentro de nosso domínio psíquico. Segundo Freud, é através do narcisismo projetado no bebê, que uma mãe, às duas horas da manhã, acorda para amamentar seu filho. É o eu ideal ali representado na criança, que movimenta aquela mãe nas madrugadas da vida. Neste ponto de vista, o bebê é dotado de certa onipotência, o que levou Freud a cunhar a famosa expressão “sua majestade o bebê”. Quando um bebê sai pelas ruas as pessoas, compulsivamente, querem tocar aquele ser tão majestoso, um fetiche maluco por aquele ser. E os pais, estruturados narcisicamente, projetam no filho ou na filha, que é o meu caso, seu eu ideal, de uma pessoa perfeita, maravilhosa, que carrega nesse bebê uma libido que os faz acordar às duas da manhã e ir até seu filho onipotente.

O narcisismo do senso comum é o narcisismo, que seria quase que uma autocontemplação. Por aí, insiste-se em entender o narcisismo como aquela questão de você olhar você mesmo e entrar em um processo de autocontemplação, que pode ser entendido como um autoerotismo anacrônico, que seria o único jeito de prazer que a criança possuía com suas próprias zonas erógenas. Naquele momento, não existe o outro. É uma fase do autoerotismo, onde não existe objeto, a mãe ainda não existe enquanto objeto completo.

Esta mãe, na verdade, é apenas um seio, que está ali naquele momento. E não está em outros. Depois, quando a mãe passa a ser percebida como objeto completo, a criança já estará em outra fase, quando, a partir de seu o narcisismo, consegue construir sua mãe como objeto externo, dando início ao processo de identificação secundária. A partir daí, a criança inicia seu processo de projeção e identificação, e inicia a querer “ser”, a partir do “ter”, o que determina o objeto externo, ou seja, a cultura. Neste momento, a onipotência, é projetada na cultura, como o próprio Freud trabalho em sua obra Mal-estar da Civilização.

Freud fala de uma cultura que é relativamente diferente da atual. Aí está a devida relativização da questão do gozo. A cultura atual tornou o gozo um imperativo, enquanto que nos tempos de Freud, este era reprimido. Outra diferença marcante entre aquele tempo e os dias de hoje está relacionada à ordem do público e do privado. Se foi a fronteira marcada entre o que é público e o que é privado.
Há uma fala do Bauman onde ele fala do fim da modernidade ter sido marcado por uma entrevista de uma francesa, uma tal de Viviene, que relatou em um talk show da televisão: “Eu nunca tive um orgasmo no meu casamento porque o meu marido sofre de ejaculação precoce”. Para Bauman, simbolicamente é claro, a partir desse momento quando ela fala para milhões de pessoas algo de sua vida privada, tem início a pós-modernidade. Nestes tempos, o público e o privado perderam definitivamente suas fronteiras. Por exemplo, o confessionário do Big Brother é um local “privado” com duas portas isoladas de 7 pessoas, enquanto milhões assistem ao que é falado lá. O padre do confessionário pós-moderno é 7 milhões de pessoas. Então, essa cultura tenciona, o tempo todo, fronteiras entre feminino e masculino, público e privada, local e global. E esta cultura cultua a visibilidade midiática como moeda social.

Há um verdadeiro consumo de visibilidade. Um consumo da projeção, do capital simbólico e social dentro de redes digitais como o Facebook, onde os “curtir” são vividos como gozos contemporâneos. O “compartilhar” então, é um vivenciado pelos internautas como um espetáculo público. Há também a síndrome do check in. Não falo apenas de uma sociedade que exige um espetáculo, a todo momento, mas também exige que todos sejam protagonistas deste espetáculo.

Dèbord falava de uma cena no espetáculo onde no palco estariam poucos protagonistas. Hoje a sociedade oferece oportunidade para que todos tenham seus 15 minutos de fama, seja na timeline do Facebook ou em uma promoção da revista Cláudia, onde a leitora pode sair na capa desde, é claro, que esteja de acordo com o perfil esperado pela revista. Nossa sociedade atual do espetáculo promete o sucesso desde que sigamos os pontilhados que esta nos oferece como modelos de comportamento. O traiçoeiro é que pensamos que estamos escolhendo livremente o que consumimos, o que somos, quando, na verdade, escrevemos por cima de um contorno pontilhado que é predeterminado. É assim com os ideais da cultura. Ou será que realmente consumimos devices, como iPad, iPhone, iPod, por total livre iniciativa de cada um de nós? Vivemos em um tempo em que é possível ouvirmos de nossos jovens a seguinte frase: “tenho um perfil no Facebook, logo existo”.

Talvez, nos tempos de hoje, o narcisismo se apresente como uma saída deste modo de vida condicionado pelos pontilhados do mercado. Este modo de vida, que é totalmente padronizado, pode encontrar um escape a partir da ideia de um eventual retorno para aquele narcisismo primário. Aquele que nos permitiria parar de projetar toda nossa libido sobre a cultura, pois esta nos oprimi a consumir o que está determinado. A partir de um olhar para o próprio umbigo, podemos pensar em nós mesmos e começar a entender o que realmente gostaríamos de consumir. O que realmente queremos, desejamos, sonhamos. Este olhar para nós mesmos pode ser uma saída. Então, o narcisismo, como estrutura, pode ser, ao invés de um sinônimo de uma sociedade individualista e egoísta, uma importante porta de saída para o sujeito atual, oprimido a gozar o tempo todo a partir do consumo de gadgets da moda. Assim, este sujeito pós-moderno, submisso a esse modo de vida atual condicionado pelo ideal do eu contemporâneo, pode ter uma saída deste modo de vida condicionado por uma cultura que usa o consumo como forma de controle e não uma cultura consumista, como generalizam alguns.

É isto que trata meu artigo, disparador desta discussão de hoje. Neste meu escrito, eu termino dizendo, então, que o narcisismo, enquanto estrutura psíquica qualitativa e dinâmica, pode ser nossa grande saída deste ideal de eu pós-moderno. Lógico que não imagino voltarmos à onipotência da “sua majestade o bebê”, mas seria uma volta a pensar em nós mesmos com certa dose de egoísmo, a fim de pararmos de seguir tanto os modismos e os determinismos dos mercados dominantes, e nos tornemos, realmente, sujeitos desejantes em acordo com o que sonha nosso mundo interno.

O restante do documento está a disposição no link abaixo:
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